quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O amor

o amor te ensinou a ter medo
do seu jogo preferido
tirou-o de casa uma vez
fez voltar outra vez
o amor deixou o seu rosto marcado
a postura mais curva
o cabelo mais ralo
o amor te empurrou
da escada
recolocou-o
na poltrona
o amor se mostrou
nos livros com recados
nos quadros da casa
em corações pendurados
o amor ficou de luto
escapou um minuto
disfarçou-se de vulto
no entanto o amor, meu amor,
esse amor malcriado
maldito e encantado
nem por decreto
deixou o seu lado

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

pelas paredes

é muita gente 
que passou 
pelas paredes
tijolos
seus olhos
seus filhos
o que ficou 

preso no fio

um dia você ganhou 
um coração 
preso num fio 
o prendeu 
no retrovisor
o manteve
balançando
não é mais tudo 
símbolo?


nem eu

você acha mesmo
que me sabe toda:
batatas
tristeza, tesão?
há um décimo meu
que nem eu

prega um prego
me dá um beijo
toca rebolo
afaga o cão
menos um quadro
mais um beijo
um prego
loja de construção
cólica prego
quadro foto
dor
tristeza
hospital solidão
deito no chão
Grande Sertão 
penso demais
afago o cão
domingo doeu
onde estava eu
com prego na mão

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Impulso

o céu branco fala diretamente com o meu peito
o seu corpo é sempre tão quente, eu não entendo
em alguns momentos eu me canso
e tenho vontade de voltar pra casa
o impulso humano é o de deitar-se ou de seguir?
às vezes parece que você tem as respostas
eu só não entendo o que elas querem dizer
minhas perguntas aumentam
o céu branco fala diretamente com o meu impulso
de deitar-me no seu peito sempre quente
você não tem resposta nenhuma para as minhas perguntas
o impulso humano deve mudar constantemente 
em alguns momentos eu me canso
e tenho vontade de fazer-te minha casa

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Fragmentos

espalhados
e parados
nos porta retratos,
nos pires, quadros e recados
micro fragmentos de mim
do meu cheiro, pensamentos, corpo inteiro
transformam minha casa
e tudo à minha volta
em um pouco de mim

domingo, 3 de novembro de 2019

constatação

As marcas de dedos no vidro da varanda 
o pôr do sol entre prédios
são uma espécie de aviso 
o astro e eu em algum lugar 
ocupamos o mesmo espaço


Há um cão que obedece
flores que nunca desbotam
o pai de um antigo amor
há mãos fortes
pedaços dele espalhados
em dois pedaços menores
há uma força que o move
o tempo todo pra frente
um sorriso que a espera
sempre no topo da escada
Há nela uma enorme vontade
de haver também nele


No peito

finalmente eu senti o lado esquerdo
não sei dizer se uma batida
um aperto
algo pesado
algo quente
algo que não sei dizer
se amor, saudade, tristeza
ao mesmo tempo
talvez tudo isso
seja uma coisa só que aperta
no peito

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

ser de alguém

mesmo que ser de alguém
esteja fora de moda
não consigo mais ser só minha
agora eu sou sua também
em tudo que eu sou
sinto, vejo, percebo e reflito
sou minha sim eu repito
mas parti minha alma no meio
e a outra metade lhe dou

Caso

você sentou no meu braço

imediatamente me esqueci de tudo que era antes

perdi minha casa

a noção de espaço e de tempo

disse sim

enquanto descia a escada eu sabia

seria você a minha casa

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

não adianta

tenho vontade de gritar com ela
apertá-la pelo pescoço, chacoalhá-la bem
mas não adianta, não tem jeito
nada disso tem efeito
a poesia é teimosa, mal-criada
só aparece quando quer
e nem sempre eu a entendo

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Sonhei

Eu olhava nos olhos do Steve Martin e perguntava:
como se faz para criar algo original no campo da atuação?
Ele ia responder, mas era interrompido.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Seminário

Quem é esse homem? Sobre o que ele fala?
quando me beijou na cama mais cedo sua língua era outra
"tratar o real pelo simbólico" do que se trata?
Ele fala, fala, fala grego, árabe, francês
quem é esse homem que dorme em mim?
ele diz datas, anos, um bebê chora lá fora
"no seminário de Roma" parece tão solene
quando me beijou na cama era leve, suave
ele chama o bebê de melodia agradável
e o despreza solenemente
tenta se concentrar de novo, sério
eu penso no bebê, no quanto os bebês choram
esse homem é a minha casa?
"a ruptura das coordenadas simbólicas"
não faz nenhum sentido para mim
mas eu acho bonito, queria colocar num poema
toda ruptura rende um poema
todas as suas
será que algum dia a gente se separa também?
espero que não e espero mais um pouco por ele
Sinto que ainda temos aquela venda nos olhos
aquela que se desfaz com o tempo
quando o amor se acostuma
sobre o que esse homem fala?
Alguém pergunta algo em russo
a mulher ao seu lado diz que é algo muito sério
eu penso se é sério como o aquecimento global ou o câncer
ou sério como ele, que franze a sobrancelha penteada por mim
eu sei quem é um fragmento desse homem
o meu fragmento
quero sentar no seu colo e fazê-lo rir como sempre
Esse fragmento de homem me amaria mais
se eu o entendesse inteiro?



segunda-feira, 30 de setembro de 2019

fim de semana

você prega dois quadros na minha parede
seu cachorro me fareja chegando
passa um trem na minha janela
prefiro os seus passarinhos
coloco roupas pra lavar na sua cesta
será que um dia a gente se casa no almoço
a calça do seu filho me cabe
você não gosta do churros
a moça que vasculha o lixo nos chama
o velho artista recita poesia no ipad
triste com o frio e as coisas da velhice
um estúdio com vista
pra gente imprimir amor nas paredes
o próximo inquilino vai ter que pintar
naquele monte de livros eu te conto:
uma mulher fez poesia com o movimento dos olhos
o movimento que fazemos me encanta
não gostava desse bairro
mas estou aprendendo a amar cada canto
porque é seu

Contagem das notas

Adio todos os dias a contagem das notas
já sei que não são muitas 
todos os dias me fazem pensar 
os legumes enrugados na forma 
a minha pele
contar notas é o que se faz
essas palavras que eu transbordo
me desenrugam um pouco a pele
mas não colocam legumes na forma
é preciso levantar 
e contar notas

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

de manhã

Eu sei que não dá tempo pra mais coisa
de manhã:
tem o café, o cão, o rosto para lavar
pernas que te prendem

mas sabe o que é?
precisa regar também pela manhã
faz tanto calor
manjericão gosta de água
o tomilho-limão e aquela azulzinha

sendo assim, deixe comigo
eu irei te enroscar
toda manhã te atrasarei
café, cão, rosto pra lavar
depois
prometo
eu regarei nosso jardim

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Tô falando agora

Fico querendo dizer que eu te amo em momentos que não tem nada a ver como quando estamos deitados vendo filme ou no meio da madrugada quando você está dormindo ou quando estamos no sofá da sala depois de ter passado vários dias sem se ver. Acontece que falar eu te amo me soa sempre tão redundante, óbvio, clichê. Um carrapato dizer que adora sangue. Você já sabe e eu falar parece que vai tirar a graça de todos os gestos que falam por mim. Já falei tantas vezes. Tô falando agora enquanto te olho com essa cara de boba e fico fazendo carinho no seu rosto. Falei também quando criei o hábito de sentar no seu colo no café da manhã. Te amo. Te amo.

domingo, 1 de setembro de 2019

terça-feira, 27 de agosto de 2019

ex-jogador

o tempo não sabe a hora certa
ele diz, e corta a carne no prato
me sento no seu colo para ouvir
não posso reclamar, ele fala, não vivi uma vida morna
observo suas manchas de perto
imagino as suas casas anteriores, o filho que ele não teve
as paixões que arrancaram raízes
o pintor que era sogro e agora é paciente
eu gosto de ouvi-lo contar
as batatas no seu prato parecem aguadas, sem gosto
mas o pedaço de carne brilha
ele dá mais um gole no vinho bem na hora de dizer
que não sabe o que esperar
que não pode mais jogar rugby
ele tem o corpo que eu gosto, de ex-jogador
ele mostra sua taça maior do que a minha
e eu bebo bem na hora que digo
que agora eu faço parte
também não sei o que esperar, mas sei que é muito
não fui a primeira mulher a chegar
mas eu cheguei bem agora, nesse momento preciso
eu trouxe comigo o meu tempo, o meu corpo
o meu órgão que bate
eu não digo nada mas penso
o tempo sabe a hora exata

sábado, 24 de agosto de 2019

Noite em claro

A primeira vez que eu passei a noite em claro
eu estava no acampamento de férias
eu e o menino ruivo que tinha a voz rouca
ficamos mexendo na fogueira semi apagada,
olhando o céu ficar claro
espantando espíritos com gravetos
no dia seguinte eu lembro de olhar no espelho
e ver aqueles sulcos roxos debaixo dos olhos
depois eu dormi e elas foram embora, as olheiras
agora não é mais assim
as olheiras estão sempre aqui,
mesmo que eu durma o dia todo
me lembram que os anos estão passando
não adianta espantar espíritos com gravetos
eles vem de qualquer jeito
levam um pouco da nossa vida
e deixam os nossos olhos marcados

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Sonhos

Uma vez eu sonhei que você me dizia
amar é trocar o vazio
pelo transbordar
você tocou uma música pra mim
no violão
e no final me disse
que os seus olhos saíram de órbita
eu não sei o que isso quer dizer
estou sempre cheia de sonhos
com mensagens secretas
você decifra e não me conta
mas é tão fácil de ver
que estou transbordando


segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Procuro uma casa

eu olho as ruas no mapa e elas não são muito perto da sua
nem do metrô
nem do meu salário
penso em desistir mas minha mãe me chama da cozinha
eu preciso de espaço
de silêncio
as ruas tem nomes de mulheres tristes
Linda Ferreira da Rosa, aposto que não era linda
nem de nenhuma rosa
eu nunca paguei aluguel
só o supermercado
e as plantas
a sua voz se dá bem com qualquer poesia
sua risada com a minha
as ruas com árvores não são mais caras
elas já vem com passarinhos
mas o aluguel não muda por isso
de repente eu percebo que procuro uma casa
bem dentro da sua gaveta

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Chanel número 5

Eu abri a gaveta e encontrei no canto, ao lado de alguns livros, um Chanel igual ao meu. Mas não era o meu. Era de alguém que esteve ali antes de mim. Uma mulher que não conheço, nunca vi. Fechei a gaveta com vontade de ir embora. Tinha um pouco da mulher na gaveta. No cômodo, no lado direito da cama, em todos os seus lençóis. Em tudo seu tinha um pouco da mulher que não era eu. Quanto dela teria em você, nos seus pensamentos, no seu jeito de sorrir? Sentei na cama e você falou comigo, mas eu não ouvi. Só queria ir para casa. A minha casa. Abrir a minha gaveta e encontrar as minhas coisas, os meus livros, o meu cheiro. Acordei. Aquilo foi só um sonho: a mulher, a gaveta, o perfume. Um sonho que podia ser real, mas não tinha nenhum perfume na gaveta. Te contei do meu sonho no café da manhã. Desci as escadas rumo ao portão e você sussurrou: psiu, a gaveta é toda sua. Sorri. E a mulher dissolveu-se de tudo quanto é canto.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A chegada

Meu pai, romântico, sempre me falou dos sinos que tocariam
anunciando a chegada do amor.
Ele é um dos poucos homens que viu o amor a olho nu.
Andou por aí, teve muitas mulheres,
mas sempre foi só da minha mãe.
Quando eu digo que estou apaixonada, ele rebate: "ouviu os sinos?"
Exagerado.
Sinos que tocam sem que ninguém ouça é esquizofrenia.
Tem remédio pra isso.
Quando eu te vi, encurvado no braço da cadeira
o rosto cansado, o cheiro de cerveja,
é claro que não houve sinos, eu nem esperava
mesmo que o beijo encaixasse, o abraço, a conversa.
Ontem você leu poesia para mim
sua voz cuidadosa respeitava os versos,
o tom que pede cada palavra, a calma
um ruído interrompeu a leitura, mas você não parou
me olhou sorrindo como se nem percebesse
o ensurdecedor badalar.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Poesia

meus amigos não entendem

a solidão que é gostar de poesia

esmiuçar palavras, solitária

organizá-las por cor

vê-las dançando, gritando coisas

quando rabisco algumas frases

exponho as minhas tripas e eu gosto

acho lindo

mas é pura solidão.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Embaixo da cama

Eu sei que é preciso olhar
mas é tanto o meu receio
já encontrei de tudo
embaixo da cama alheia
sacos de ossos, escuridão
perda de tempo, não
o olhar nem sempre atento
deixa passar tanta coisa
quando eu precisar olhar
embaixo da sua
o medo é do que vou achar



vez

Não vês que outra vez
essa vez
parece a última vez?
Eis que dessa vez
seja talvez,
não vês?

quinta-feira, 4 de julho de 2019

uma hora

espera que eu estou me preparando
pouco a pouco
por dentro
aprendendo a ser
me espera que uma hora eu chego
se deus quiser
e eu sei que ele quer
me ver sendo

Fora

de pensar que eu já coube
dentro da minha mãe
me sinto tão fora
de tudo quanto é lugar

As duas vidas

A vida na terra me põe a questionar a vida etérea
a vida etérea me põe a duvidar da vida na terra
embora vivam juntas, de mãos dadas
as duas brigam nos meus sonhos.
Quando acordada, eu brinco com as duas
distraída nem percebo:
são elas que brincam comigo.

terça-feira, 2 de julho de 2019

destino cravado

Ele nem sabe
mas era para ela ter ido embora há 20 minutos
no dia que eles se conheceram
[ela chegou a descer as escadas]
acontece que ele
não acredita em destino cravado
[e talvez seja mesmo bobagem]
então ela nem fala nada




sexta-feira, 28 de junho de 2019

o corpo preciso

Tem tanta vida pela frente
mesmo quem não tem
cada segundo é tanto tempo

por mais que com o tempo
o corpo se canse
cada segundo é um templo

a todo instante que vivemos
temos o corpo preciso
para o que precisamos

Temos tanto tempo
mesmo quando não temos
tudo é sempre tão exato

nada que temos agora
é menos, nem mais

o corpo e o tempo sabem
a leveza na alma é uma cura
o passar do tempo também

quarta-feira, 19 de junho de 2019

boca do outro

você repetiu o que eu disse
fiquei assustada
quando ouvi da sua boca
quis ficar em silêncio
esquecer sua presença
pensar no que eu disse
tudo parece tão distorcido
quando sai da boca do outro

vontade

me acostumar com os seus lençóis
fazer parte de alguma rotina
sentir o seu cheiro de manhã
ouvir o som que você ouve
antes do café
saber as suas histórias
até as que você não conta
lembrar a cor dos passarinhos
que cantam na sua janela
não ver pôr do sol da varanda
por causa das árvores
conhecer os sapatos dos seus filhos
embaixo das pequenas camas
trocar os meus pés
pelos seus

terça-feira, 11 de junho de 2019

Se livrar

Estou tentando me livrar de tanta coisa atualmente
coisas do meu armário, da minha casa antiga
coisas que são só bonitas, cartas velhas
nem preciso de tanta foto do passado
às vezes eu imagino, como naquela música do Chico,
minhas coisas submersas, livros, diários
frases grifadas
Estou tentando me livrar de hábitos
de pensamentos, de nuvens tapando o meu sol
outro dia eu doei uma blusa cinza que eu usei uma vez com você
fomos no cinema, nos abraçamos na escada rolante.
ela não me traz mais aquela alegria.
Tenho duas sacolas paradas em casa
de coisas que eu preciso me livrar
Outro dia eu doei uma lata comprida que eu não usava
ganhei um café que caberia perfeitamente lá dentro
me arrependi
a gente não se livra de pessoas
se desconecta, se separa, se afasta
eu me afastei de muita gente que ocupava um espaço precioso
um espaço que poderia estar sendo ocupado por poesia,
conversas sobre o Universo, compreensões profundas,
risadas de alma, arte ou silêncios sagrados.
me livrei de um livro horrível que eu precisei editar
faltavam dez páginas mas eu não aguentei
tanto tempo perdido para ler algo que me doía os olhos
não consigo me livrar de alguns sentimentos
medo, raiva e solidão
existem coisas das quais são dá para se livrar
nosso corpo, nossa história, nossa condição como humanos,
solidão.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

processo criativo

eu aprendi num curso que eu fiz que a maneira mais eficaz de se aprender alguma coisa é ensinando.

você me disse que eu te ensinei muita coisa. queria saber o quê

estou com dor de dente e todos os dias eu torço para que passe sozinha

muitas dores passam sozinhas e sempre levam alguma coisa junto

às vezes um dente

a gente falou de processo criativo

vou precisar pensar qual é o meu

fico olhando as pessoas, cavucando amores antigos

[eu poderia estar casada agora, sem nem saber quem eu sou]

fisguei a minha alma lá no fundo do oceano
quase afogada, sozinha

abandono de incapaz

o cabeleireiro me perguntou qual é o meu defeito preferido

físico ou de personalidade?

respondi "olheiras" e pensei na minha enorme dispersão
eu não consigo me concentrar

o que foi mesmo que você falou sobre a sua mãe?

ainda bem que você cancelou nosso jantar
faz tanto frio e você quase não me entende

você me acha um bicho esquisito que te faz rir

um bicho bonito

eu queria mesmo era achar um bicho da minha espécie

um bicho pra me ensinar a ser gente
um bicho que eu pudesse aprender.


Não sei dizer o que foi

Não sei dizer o que foi
o café da manhã era bom
a massagem também
a conversa
o encaixe
não quis ficar em silêncio
só um pouco
ele também
o som da rua não atrapalhou
o tempo curto
o monólogo
me dá mais um abraço:
não foi

templo

me sinto tão bem agora
que me falta poesia
eu gosto de homens que me tratam como um templo
eu sou mesmo um templo, nós mulheres
gosto de ver as minhas cascas caindo no chão
dia após dia
gostei de te ver no bar, o mesmo de sempre
sem um pingo de empatia
desesperado por amor verdadeiro
você foi o último que eu deixei entrar
você me ensinou a esperar pra ver
eu só agradeço, tanta calma agora
minha poesia sempre veio da tristeza
agora eu sei mais
mas me falta poesia

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Mancha

veja como é pequena
e engraçada
a minha alma
veja como brilha
e ri da tentativa
de prendê-la neste pote
já não está mais aqui ela
deixou uma grande mancha
de algo que não sei
amor, será?


segunda-feira, 27 de maio de 2019

Ele não sabe

Será que ele não sabe
que ela tem fios de cabelo 
caindo no rosto 
no pescoço, na nuca?
dedos que mexem nas coisas 
com elegância e unhas
que parecem sempre feitas?
será que ele não sabe
que ela faz poesia com as palavras
dá risada do engraçado
opina sobre tudo 
- tantas vezes com razão?
ela tem olhos azuis
corpo de bailarina
velas, incensos e anéis,
será que ele não vê?
as coisas que ela escreve 
podiam estar emolduradas
mas estão no livro
que ele insiste em devolver
o coração dela 
devia estar num altar cheio de flores
mas acho que ele não sabe
ela tem fios de cabelo 
que caem no rosto enquanto fala
mas acho que ele não vê.



terça-feira, 21 de maio de 2019

flowers in the mug

when I saw you, the poor stranger
sitting down at the table with the guys
you had such big eyes
you stared at everyone so curious
I tried to help you understand the chattering
somethings were too confusing
somethings not funny at all
like when I hit the glass door
you didn't laugh
you seemed so serious
and so interested in what I had to say
I wasn't going to kiss you
but you sounded so Italian
so free and sweet
so inviting
I gave you that mug
hoping you'd come back
so we could put flowers in it
and make it part of our story

era nenhuma vez

Montei no cavalo branco e fugi
não disse sim
não tive tempo 
quando vi, já era uma possessão
guardei o anel na caixa
voltei para a torre 
cortei as tranças
sumi do baile
Eu não disse sim
nenhuma vez
mas ele, cego, não ouviu

segunda-feira, 20 de maio de 2019

única

quando lembro de você indo para o quarto
vestindo aquela camiseta branca
enorme
não lembro por que fui embora
imagino o silêncio que ficou na sala
sem plantas
você me fazia rir
mas eu chorei uma vez
- e bastou.



sábado, 27 de abril de 2019

sorrio

Gosto de imaginar
você me procurando na festa
sorrio quando penso que você
nunca vai me encontrar

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Quando acendo a luz que carrego no peito

Quando acendo a luz que carrego no peito
eu entendo:
tem sempre alguém por perto
Luz brilha, ilumina
é ímã de companhia
Quando acendo a luz que carrego no peito
eu vejo melhor os meus defeitos
não dá pra esconder
a luz revela a quem não quer ver
Quando apago a luz que carrego no peito
que percebo
dor entalada e solidão
ninguém fica com a luz apagada
não vale nada a escuridão




terça-feira, 23 de abril de 2019

Foto sua

A sua fotografia no meu computador
não me dá mais saudade
aceitaria apenas saber de você
ver o que mudou
tão difícil ter mudado
mas eu queria ver
Eu lembro daquele dia
que eu passei um perfume da Índia
um cheiro que me encantava
você disse que eu cheirava yoga
não gostou que ficou no seu travesseiro
aquela foi a última vez que eu te vi
você parecia o mesmo de sempre
guardado dentro de si
Agora eu olho a sua foto
aquele sorriso cheio de segredos
algumas mentiras
Eu não tenho mais saudade
do seu abraço e cama
você deitava sempre tão longe
Agora eu vejo na foto sua
alguém que eu nunca conheci

eu teria ido

Nosso amor nunca fez sentido
a gente não era pra ser
nosso amor estava impedido
muito antes de acontecer
Mesmo que sorrateiro
ir embora às vezes faz bem
você foi o primeiro
mas eu teria ido também

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Minha água

Quando eu vejo a minha água
num rio pequeno transbordar
sei que é preciso
de qualquer forma me desviar
se a borda é pouca
não vale a pena
seguir o fluxo, continuar
minha água é tanta
- e tão sagrada
que o meu leito deve ser grande
e também forte pra comportar.





terça-feira, 9 de abril de 2019

vergonha

você não tem vergonha de escrever poesia?
você me perguntou.
vergonha
do que sai de mim naturalmente?
palavras brincando no meu cérebro,
vergonha?
Os quadros no chão da sua casa
que parecem abandonados
a mesa sem graça e a falta de plantas
na sala sem luz, nem uma luz
os cremes no banheiro
de alguém que fugiu
quando você passou o dedo no prato
e constatou sujeira
você não tem vergonha?
Eu?
não de poesia.








segunda-feira, 8 de abril de 2019

pão de queijo

deixei cair um pão de queijo no chão
olhei para sua amiga e rimos
colocamos de volta na vasilha,
disfarcei
te conheço muito bem
não deixei nem chegar perto:
eu mesma comi.

você me salvou do carnaval

você me salvou do carnaval,
e eu pisando em ovos
orgânicos
esqueci de reparar
em todas as coisas erradas
você me ganhou no carnaval mas
eram tantas coisas erradas
que eu não quis mais voltar

segunda-feira, 25 de março de 2019

semana que vem

eu ia voltar na semana que vem
deixar sândalo no seu travesseiro 
te levar uma costela de Adão
morder o meio da sua barriga
tentar te fazer ouvir
mas você é tão disléxico
confuso
te falta paciência, silêncio
você é tão inteligente
e distraído
meu hidratante na pia
eu deixei pra você ver que
eu ia voltar na semana que vem




terça-feira, 19 de março de 2019

seu

Esse aqui é para você
que chegou meio depressa
depressa demais
me levou
esse aqui é para você
que foge de sujeira
de multidões
que gosta de dormir
gostou de mim
eu também gostei de você
e esse aqui é todo seu.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Caminho

Eu sei que estou no caminho certo quando sinto que estou ficando cada vez mais parecida com a minha mãe.

quarta-feira, 13 de março de 2019

breve

ontem, enquanto eu voltava de qualquer lugar, me lembrei do nosso amor breve. de quando eu ia para sua casa pela avenida paulista. era curioso que sempre tinha vaga bem na frente do seu prédio. você tinha que descer para abrir a porta e às vezes a gente comprava cerveja no seu bar de esquina. eu gostava quando você começava a ficar mais falante por causa da cerveja. uma vez você ficou bêbado no sofá, me pediu mil desculpas e disse que me amava. em seguida você disse que eu não queria te amar de volta. talvez você tivesse razão, mas não era consciente. a gente encheu a sua casa de plantas e você fez delas suas filhas. algumas morreram, mas é assim mesmo, plantas são mesmo difíceis. você me deu de presente um livro fascinante sobre a complexidade misteriosa das plantas. a gente conversava na varanda e a casa ia enchendo de pó que vinha da rua. o pó era mais forte do que as faxinas. o barulho da rua só parava bem tarde. a vista para a lua era linda. eu queria ter ouvido mais a sua vitrola, acho que só ouvimos uma vez. eu gostei tanto de quando a gente assistiu o meu filme preferido e você chorou. você se encantou como eu. aquela vez que a sua sopa estragou na geladeira eu queria morrer. ter tirado os tapetes da sala foi a melhor ideia. eu ainda não entendo muito do que você tanto se esconde. se eu quis te amar eu não sei, mas eu acho que amei.

segunda-feira, 11 de março de 2019

que horas

queria poder transbordar
por todos os poros
ao mesmo tempo
escorrer nas suas mãos
mas nem sei que horas
eu volto pra casa
tantos rios correm
entre nós dois
espere um pouco
me dá mais um tempo
que logo eu revelo
às quatro da tarde.

mãos

Quando vejo mãos dadas na rua
me dá saudade
de enganchar meus dedos em outros
sem medo 
de parecer demais

o meu

se há tempo pra tudo  
ele vai demorar
o meu?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Território

Esse território desconhecido chamado você
que eu não sei quem é 
de onde veio 
e por quê
Acontece que eu 
talvez por acaso 
queira saber





quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

no chão

Menino viajado
me convenceu a deixar
a cautela
a prudência 
o cuidado 
para dormir no chão
ao seu lado 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Ibiuna

A chuva começou de novo por aqui
onde será que estão aqueles gambás que vi hoje cedo
em cima de árvores
a vela de soja insiste em ficar acesa
ela que estava para acabar
queria ter uma fábrica de velas
gosto tanto da companhia de uma chama
uma luz que me observa, me assiste
a chuva não tem um barulho próprio
depende de onde a gota toca
aqui a chuva tem som de grama
um som suave
os sapos berram lá perto da represa
os grilos esfregam suas pernas normalmente
me recuso a apagar a luz da piscina
essa luz que só aparece à noite
são tantos bichos
como será que eles escutam o meu barulho?
será que a chuva também ouve o meu som?

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Wisdom

There is an invisible wisdom
of the cosmos
in the fact that
you are absent here today. 
I know nothing about this wisdom
or about the cosmos
but you are absent
and there is always a knowledge
a secret, impenetrable
wisdom of the universe
in the fact that
someone is absent
and not twined with someone else.



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

A orquídea e a vespa

Você me contou que a vespa 
encantada sobrevoa um jardim
suas asas fazem barulho
no meio de cheiros e cores
de repente as suas antenas param
percebem aquela substância
o feromônio que tanto a excita
a vespa faz meia-volta e,
reconhecendo por ali uma fêmea,
copula. Então você me diz que 
a orquídea, disfarçada de vespa fêmea,
ri gostosamente no jardim
se sente polinizada por completa
respira tranquila e
assegura-nos mais uma flor. 
Meu bem, eis que eu não sou flor
não posso nem enganar a mim mesma
serei então eu a vespa cega 
que deixa um pouco de si 
e voa iludida para longe?

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Espera um pouco

eu posso gostar de você
mas espera um pouco
deixa eu ver melhor
do que você é feito
deixa eu ver se te interessam
as coisas que vem comigo
minhas noites de poesia
as conversas profundas
que ainda não pudemos ter
você fala sem notar
se o outro está mesmo ouvindo
esquece até de perguntar
quando fala da sua vida
eu quero gostar de você
do seu jeito carinhoso
sua vontade de cuidar
mas espera um pouco
deixo ver se é sempre assim
duas bocas e um ouvido
e a falta de um olhar
que veja mais pra dentro
que repare nos detalhes
eu já gosto de você
mas espera um pouco
ainda é cedo
quero ver se é assim mesmo
ou se é só eu te mostrar





sábado, 2 de fevereiro de 2019

As energias das coisas

as coisas possuem energias próprias
os vasos, os porta-retratos
o silêncio e a meditação
acender uma vela à noite
a reza e a ajuda ao próximo
as coisas trocam energias
a todo momento
nossos corpos quando se tocam
as conversas e as paredes
as festas e a solidão
o tempo mexe nas energias das coisas
dos templos, de casa
do corpo da gente
energia não se cria e pode acabar
as coisas que sugam
as coisas que elevam
é preciso saber todo tempo
diferenciar umas coisas das outras

Alma

Escrevo para conversar com a minha alma
toda feita de melancolia e esperança
ela me avisa do que já sei
às vezes me conta segredos
desses de alma
eu quero mostrar para ela
o que eu vi e aprendi
há dias, porém, que tudo me escapa
e eu tenho medo
ela segura a caneta com meus dedos
pede que eu não me preocupe e me diz
que sempre haverá papel e caneta.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

mãos

Você me convidou para dançar e eu aceitei, mas ainda não era hora. Você me esperou no canto da pista com cara de ansioso e na hora certa pegou as minhas mãos. Tanta coisa aconteceu depois disso. Tanta vida passou. Mas eu nunca vou me esquecer de sentir as suas mãos tremerem ao encostar as minhas pela primeira vez.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Tô aqui pra isso

Minha irmã me falou que era a melhor ideia. "Se você não se declarar, você nunca vai saber"- ela me disse. Eu gostava de seguir os conselhos dela porque ela era mais velha, tinha mais experiência, sabia do que tava falando. Talvez. O fato é que eu estava muito apaixonada e cheia de esperanças do Duda me querer também. Nós éramos bons amigos, vivíamos trocando bilhetinhos durante a aula e nos dávamos super bem. Não tinha como dar errado. Numa das aulas eu mandei um bilhete perguntando: "o que você faria se gostasse de uma amiga sua?" Ele me respondeu: "falaria para ela." Nós demos risadinha, ele logo mudou de assunto e ficou por isso mesmo. Minha irmã começou a pressionar lá em casa: "vai falar ou não vai?" "E aí, já falou?" "vai logo com isso!" Eu resolvi falar. Peguei toda a coragem que eu tinha estocada e fui até a casa dele. Nós éramos vizinhos também. Ele abriu a porta e eu falei: "Duda, lembra que você me falou que se gostasse de uma amiga sua, você falaria para ela?" Ele disse: "sim, e o que tem?" Eu respirei fundo: "pois então, tô aqui pra isso." O Duda não gostava de mim do mesmo jeito. Ele ficou completamente sem graça e falou: "poxa, fui pego de surpresa... você sabe que eu gosto da Marina, né?" Até hoje a minha irmã me pede desculpas por isso.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

chamados

Eu durmo de janela aberta
ouço grilos a noite toda
todos os tipos de grilos
sempre chamando alguém
será que as fêmeas ouvem
toda noite um grilo chamar?
desesperados e inofensivos
na minha janela nunca faltam grilos
precisando de alguém


domingo, 20 de janeiro de 2019

Tolerância zero

A professora era querida pelos alunos. Era uma mulher jovem, simpática e sempre dava um tempinho para os alunos brincarem no final da aula. Os alunos estavam, aos 11 anos, passando por uma fase de falar muito palavrão e de testar os limites dos professores. Inclusive os coordenadores haviam falado para os professores ficarem atentos e avisarem a direção se algum dos alunos passasse dos limites. A tolerância com palavrões era zero naquela escola. Era uma quinta-feira e na sexta os alunos iriam para um passeio, então o clima era de quase folga. Estavam todos animados. No final da aula a professora propôs o jogo dos palitos, aquele no qual o jogador tem que tentar pegar o máximo de palitos que conseguir sem mexer os outros. Se qualquer outro palito mexer, ele perde a vez. A professora jogava com o maior entusiasmo, como se os alunos fossem seus amigos. Ela estava perdendo, então estava mais atenta do que nunca nas jogadas. Quando era quase sua vez de novo e o aluno do seu lado estava conseguindo pegar um palito atrás do outro, ela viu um dos palitos mexer. Aparentemente os outros alunos não tinham visto nenhum movimento. Ela disse: "ei, o palito de baixo mexeu!" O aluno que jogava falou: "não mexeu não!" Ela, distraída, respondeu de forma automática: "mexeu pra caralho!" Os alunos ficaram completamente boquiabertos, sem conseguir reagir ao palavrão da professora.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Apesar

você me chamou de raio de sol
disse que somos
tão parecidos
que quer me cuidar
que me acha tão linda
você me chamou pra morar com você
disse que nós dois
encaixamos
que damos um jeito
que temos assunto
até o dia seguinte
que eu sou muito
Eu peço que ouça um minuto
eu concordo com tudo
não acho pessoas
assim na esquina
no aplicativo, ao vivo ou no bar
você é a flor
que o raio de sol quer tocar
acontece que eu
não consigo mandar
nos meus sentimentos
não vai dar pra ficar
de jeito nenhum
apesar de querer e de tanto tentar
o meu coração não consegue te amar

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Charme

O nome dele era Bruno. Ele me convidou para ir ao cinema e eu fiquei super entusiasmada. Ele não era bonitão nem nada, mas tinha um charme qualquer que na época eu saberia explicar. Cheguei no shopping com um pouco de antecedência e lembro do incômodo que ia crescendo a cada minuto que passava e ele não chegava. Dez, vinte, trinta minutos. Uma hora depois eu finalmente entendi que ele não viria. Fiquei arrasada. Queria entender o que eu tinha feito de errado, me achei a pior pessoa do mundo. Demorei para digerir aquele furo. Uns dias passaram e ele me procurou para explicar o que houve, qualquer coisa besta que eu aceitei e ficou tudo bem. Acontece que eu não sei. Alguma coisa mudou dentro de mim que me fez perder o interesse. Ele não me pareceu mais charmoso, não me pareceu mais tão legal. Alguma coisa mudou. Quando ele me convidou para fazer outra coisa, eu não quis mais. E não foi forçado nem vingativo, foi porque eu não queria mesmo. Aquela foi a primeira vez que eu entendi o poder das nossas ações. Às vezes a gente faz algo que magoa o outro, mesmo sem querer, mas é preciso muito cuidado: o nosso charme pode passar. E não tem volta. Para quem ficou esperando uma hora no shopping é um alívio, é libertador ver o charme passar, mas para quem magoou o outro é um perigo. O Bruno me perseguiu por muito tempo depois daquilo e esses dias eu descobri que até hoje me espia. Faz anos. É capaz que ele esteja lendo isso agora mesmo e, se estiver, obrigada pela pequena lição.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Vidro

Eu não sabia o que era vidro. Tinha poucos anos de vida, três ou quatro. Me deram água para tomar sozinha em um copo de vidro pela primeira vez. A minha curiosidade foi tão grande que eu mordi o copo com força até ele espatifar na minha boca. Os adultos entraram em pânico ao ver minha boca cheia de cacos de vidro, que eu logo tratei de cuspir. Sangrei um pouco, mas me lavaram e cuidaram para que tudo ficasse bem. A lembrança não é nítida, mas meu pai me carregou no colo, as luzes apagadas, e ele me contou alguma história fascinante enquanto eu olhava pela janela. Lembro das pedrinhas redondas no chão do prédio vizinho e da voz baixa do meu pai, tentando me tranquilizar. Eu estava bem tranquila, pra mim os adultos eram muito desesperados. E agora eu sabia muito bem o que era vidro.

Mochila

Sua mochila é tão pequena
pra carregar sua vida
pelo mundo
não entendo como faz
pra levar suas coisas
espremidas com cada pedaço
que você arranca das pessoas
como eu

domingo, 13 de janeiro de 2019

Acorde

Teve aquele dia que eu fui pingar meu remédio na boca e não sei como eu engasguei forte. Comecei a tossir sem conseguir respirar, achei que ia morrer, mas eu não quis te acordar. Fiquei na cozinha do seu apartamento tossindo que nem uma louca, sufocada, olhando para a janela e vendo aquele prédio sendo erguido no terreno vizinho. Mesmo achando que eu ia morrer eu tentei não fazer barulho. Aquele prédio sendo erguido por alguma razão me dava mais desespero e eu engasgava mais. Fiquei nessa angústia por alguns minutos, não sei quanto tempo, e você nem sinal de acordar. Quando eu me recuperei, minha garganta doía e eu não consegui voltar a dormir. No dia seguinte eu te contei o que tinha acontecido e você disse que eu deveria ter te acordado. Quero te acordar agora. Me sinto tão engasgada. Acorde, meu amor, acorde.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

vai logo, Paulinha

Tinha uma brincadeira que as professoras da escolinha adoravam brincar com a gente antes de começar a aula, para acalmar os ânimos. A gente fazia um círculo e um dos alunos saia fora da sala. A professora então escolhia alguém para ser o líder e inventar uma série de movimentos que todos tinham que copiar. O aluno que estava pra fora não sabia quem era esse líder e esse era o jogo: ele tinha que voltar pra sala quando a professora chamasse e tentar adivinhar o líder. Era muito legal porque todo mundo fingia que estava liderando, mas ninguém podia mudar os movimentos a não ser o líder. O aluno que tinha ficado pra fora ficava confuso e tinha que prestar muita atenção para descobrir quando um movimento novo surgia para flagrar o líder. Uma vez, o jogo estava super difícil porque o aluno de fora não estava conseguindo adivinhar de jeito nenhum e tinha bastante gente na sala e estavam todos muito animados repetindo o movimento de bater as mãos nos joelhos. No meio da brincadeira eu me distraí legal, fui para o país das maravilhas da minha imaginação. Quando eu me dei por mim e voltei pra sala de aula, só alguns segundos deviam ter passado e eu vi que o movimento ainda era o mesmo. Acontece que eu estava tão distraída e parecia que tanto tempo tinha passado que eu falei: "vai logo, Paulinha, muda de movimento!" e estraguei todo o jogo.

dia de mudança

Eu tinha 12 anos e ele 14. Ele era todo descolado, gringo, lindo. Eu brincava de Barbie ainda, escondendo sempre dos amigos da minha irmã mais velha. A minha vizinha era minha grande parceira de brincadeira e naquele dia a gente resolveu arrumar a casa da Barbie na minha casa. Foi preciso transferir todos os móveis da casa dela para a minha. Tinha cadeira, almofadas, copos, tapetes, sofás, tudo em miniatura. Aliás, tinha um jogo de sofás cor de rosa que eu adorava. Fomos levando tudo em várias viagens que consistiam em: sair da casa dela, andar uns cinco ou sete passos e chegar na minha. Quando só faltava o jogo de sofás cor de rosa para terminar a mudança e eu já estava no segundo passo em direção à minha porta, eu o avistei descendo a rua com um amigo. Meu coração disparou. Eu precisava esconder aqueles móveis da Barbie com urgência se não ele jamais iria me querer. Peguei o moletom que estava na minha cintura e graças a Deus pude cobrir tudo que eu carregava. Ele e o amigo se aproximaram: "Oi. Tá fazendo o que?", o amigo perguntou. Eu respondi com prontidão: "arrumando umas coisas só, nada de mais." Eu suava. "O que é isso embaixo do seu moletom?" "Nada não, coisas de mulher." Quando eu achei que tinha me livrado daquele momento de tortura e me virei para ir embora, tropecei em mim mesma e derrubei todo o jogo de sofás cor de rosa na calçada.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Nitidamente

A primeira coisa que eu fiz quando, aos 23 anos, meus primeiros óculos de grau ficaram prontos foi olhar para a lua. Sem óculos ela era só um ponto luminoso sem grandes lances. Nunca entendi essa história de coelho, nunca vi nuance nenhuma, nada além de um ponto luminoso. Com meus óculos novos a lua realmente virou a lua, esse espetáculo brilhante que ela é. A noite com todo esse silêncio que pertence aos grilos, esse ventinho refrescante, essa coisa misteriosa e meditativa, sempre foi a melhor parte de qualquer dia. Agora que eu podia ver a lua nitidamente, foi como se um deus mitológico tivesse tomado corpo. Podia ver meu objeto de adoração logo ali. Ter demorado tanto tempo para ver de fato a lua me fez adorá-la ainda mais.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Grandioso

A gente acha que está pronto, que algo grandioso já pode acontecer nas nossas vidas. Essa é a hora. Acontece que a gente não sabe de nada. Acontece que não estamos prontos quando achamos. Ainda tem mais algumas coisas que precisamos aprender. Queremos saber o que é que ainda falta e buscamos nos livros, nas pessoas, nas espiritualidades, buscamos em tudo quanto é lugar o que  precisamos aprender. Uma busca cega. Quando ficamos cansados e estamos distraídos vivendo a vida da melhor maneira que podemos, algo grandioso acontece.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Lemon love

Não era o céu da Patagônia
mas o do meu primeiro beijo
e agora do último que eu dei
não provamos o amor de limão
mas o seu beijo tinha um gosto
que podia ser a sobremesa
você tirou o sapato pra subir minhas escadas
mas fui eu que subi seu elevador
não sei se você notou
seu elástico de cabelo
vindo parar no meu
eu não tenho mais idade
para começar pelo fim
mas agora já é tarde:
deixei entrar outra saudade





sábado, 5 de janeiro de 2019

cigarra

essa vida de cigarra
largar a pele em tronco de árvore
quando ela não serve mais
cavar buracos, tomar seiva de árvore
cantar para acasalar
o macho berra alto
mas há quem diga que a fêmea é surda
e sente só a vibração
essa vida de cigarra
largar a pele por aí
acasalar e morrer
estamos presos às nossas peles
tomamos seiva alcóolica
o som que emitimos é ensurdecedor
criamos caos e cigarro.

As suas coisas espalhadas

Elas me observam andar pela casa, chorar escrever  quando é minha vez de observá-las choro um pouco mais por tudo que carregam viagens, lemb...