quarta-feira, 23 de abril de 2014

O adeus da mamãe

Minha mãe não conseguiu falar. Como a rosa do Pequeno Príncipe que só conseguia tossir, mamãe colocou os óculos escuros e observou. De quando em quando ela chorava, mas o papel dela ali não era chorar. Também não era conversar com ninguém. Embora ela tenha uma fala calma, doce, que pode levantar qualquer um, mamãe não estava ali para isso. O papel dela era outro, poucas pessoas sabiam. Ela estava ali para garantir que a travessia do Zé fosse tranquila, que ele tivesse algum anjinho para lhe dar a mão, para que ele chegasse sem medo. Mamãe passou boa parte do tempo fingindo que estava ali, mas ela não estava, ela estava pedindo um anjinho assim e assado para ele. Um anjinho que lhe empreste um avião para ele consertar um pouquinho antes de subir, porque ele gosta muito de fazer isso, ela me contou hoje. Pouca gente sabe disso, mas o Zé saiu de fininho, de mãos dadas com o anjinho que mamãe encomendou.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Uma visita

Um aviso interrompeu a noite
e a noite não parou para rezar
nem esperou ninguém recuperar o fôlego. 
Veio a escuridão da noite
e ninguém mais falou nada.
O telefone tocou umas três ou quatro vezes
mas não tinha ninguém do outro lado da linha
- ou quase ninguém,
ou alguém sem chão, 
ou alguém com muita dor.
Essa noite todo mundo falou mais baixo, 
todo mundo ficou tentando entender:
por quê? Por quê, meu Deus?
Mas Deus nunca responde,
e hoje Deus está muito ocupado, 
Ele tem uma visita especial.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

de 1 a 10

1. sim
2. é bonito começar qualquer coisa que seja com um sim
3. mas eu não quero ver nada bonito, me basta fingir
4. aqui dentro sou eu que mando
5. e eu vou fugir
6. é bonito achar que se pode fugir
7. mas a gente sempre fica
8. porque é obrigado a ficar
9. isso é tão triste
10. fim

suspiro

Meu último suspiro é esse.
Mas o que é um suspiro, você se perguntaria.
Não sei, só posso supor:
uma manifestação qualquer de insatisfação,
ou de satisfação plena.
Um barulho qualquer, que eu não faço mais.
Nem importa mais o que é um suspiro,
é uma das coisas que você vai aprender com alguém,
como eu aprendi com você.


Suor

Caiu uma gota de suor nessa carta, mas você vai achar que é uma lágrima. Eu deixo que você pense isso, porque talvez seja bonito pra você pensar que eu sofro também. Eu morro de calor, isso sim.

Quiet

Hoje eu não vou ser eu,
porque é muito mais fácil não ser
em tempos de dor,
de arder o peito, 
de sangrar as unhas de tanto roer.
É mais fácil sair
e disfarçar caminhando. 
Lá fora, com tanta gente,
os barulhos se misturam
com o meu silêncio.

domingo, 13 de abril de 2014

O livro

Eu queria mesmo era escrever. Poder escrever um livro, contar uma história, arrancar todas essas frases desconexas do meu peito e conectá-las em vários capítulos. Eu queria isso, mas eu não consigo. As frases não se conectam, as palavras querem ficar sozinhas e o tempo. Ah, o tempo. Sempre o tempo. O livro todo podia ser sobre ele - a falta dele. Falta tempo para me espreguiçar melhor quando acordo, tempo para lavar melhor o meu rosto, tomar mais uma xícara de café, passar mais uma camada de esmalte nas unhas, escrever um livro. Ele nunca sobra, e eu sei que é assim com todo mundo. O meu livro podia chamar "A falta dele" e iam faltar várias páginas por falta de tempo.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Ditado popular

De galinha em galinha, o bico enche o grão.

Você não está mais aqui

Eu penso em você às vezes.
Às vezes me dá até um pouco de medo, parece meio sombrio.
Você não está mais aqui para me manipular assim.
Você era tímido demais para me manipular.
Às vezes você se entregava - e eu nem percebia.
Essa foi a mágica.

Sede ao pote aquariana

Vivi, eu detesto chocolate meio amargo. Se você soubesse disso você daria risada porque eu acabei de terminar um saco de chocolate meio amargo.

1,2,3.

Ouvi a sua música e criei uma letra. A gente chegou até a pensar num contrato: eu faço a letra e você o som. Mas falhou. Falhou pra burro: eu tava lá e você aqui. Eu não podia cantar pra você de longe. Então foi criando-se a distância e a sede e então tudo acabou.

Eu e eu mesma

Eu já deixei de ter medo de ser mim, mas às vezes ainda me pego nervosa quando me vejo sozinha comigo. Ser eu às vezes me magoa, às vezes me amedronta, às vezes me acalma: sou só eu. Mas acontece que eu costumo mais ficar nervosa comigo. Chego a esquecer quem eu sou. Sabe, às vezes eu penso: ainda bem que eu tenho a mim.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Longe

Às vezes eu penso que se eu não tivesse medo
poderia governar alguns países
poderia ser rainha ou uma atriz de hollywood
se eu não tivesse medo
acho que eu seria Napoleão
e por que não?
Achar que tudo é possível, que dá
mas não dá - e eu tenho medo
mal saio do lugar
só vou daqui para lá
E se eu não tivesse medo, imagine?
Não estaria aqui, não.
Tem tanto lugar bom:
agora eu estaria longe, longe.

As suas coisas espalhadas

Elas me observam andar pela casa, chorar escrever  quando é minha vez de observá-las choro um pouco mais por tudo que carregam viagens, lemb...