quinta-feira, 25 de outubro de 2012
Uma razão
O verão chegou um pouco antes do que deveria. Eu ainda não estava pronta para ele. Não tinha conseguido parar de fumar, não tinha conseguido emagrecer e nem deixar as unhas crescerem. O verão foi muito ingrato, quanto eu estava toda em forma ele não veio, me esnobou. Mas tudo bem, eu decidi que não ia sair de casa. É claro que a misantropia tem um limite e se não cuidar acaba virando uma depressão das brabas. Mas eu não fiquei com depressão, tenho aversão a essa palavra e a todo mundo que chega a esse ponto. Então me mexi antes de acontecer algo do tipo. Liguei para a Lola, fomos tomar um café. É claro que ela falou que eu estava péssima, que eu tinha que voltar a ter um foco, que uma hora a grana dos pais para de chegar, que eu tinha que voltar a escrever. Voltar a escrever? Ela foi boazinha, escrever obituários no jornal não é escrever. Eu amava a morte, eu amava descobrir que o homem que inventou a tampa do iogurte tinha morrido. Mas aquilo que eu fazia não era escrever, não era um emprego decente. Era totalmente substituível, qualquer estagiário podia fazer no meu lugar. Enfim, Lola, eu tô bem, não te chamei aqui para ouvir conselhos e nem lições, eu preciso de um favor. Preciso que você cuide do Roger pra mim. É só dar ração e limpar a areia dele. Ele é bastante limpo e não dá trabalho nenhum. A Lola ficou com cara de funeral, e eu conheço cara de funeral. Que cara é essa, relaxa, eu não vou cometer suicídio nem nada, só vou passar uns dias fora. Pipa é o nome da praia, no Rio Grande do Norte. O mesmo nome que eu queria dar pra minha filhinha, se eu tivesse uma. Vou ficar lá uns dias, conhecer um pescador gatão, tipo o Reynaldo Giannechini nas novelas em que ele é um pobretão gato. É, vou namorar um desses. E daí não vou querer voltar mais, mas vou precisar voltar por causa do Roger e do meu apê, que eu não vou conseguir vender. Vai ser lindo aquele drama todo para deixar o Reynaldão de lado e voltar pra cidade. Rimos muito com aquela ideia boba e ela aceitou ficar com o Roger. Quando cheguei na Pipa eu relaxei. Li todos os oito livros que eu levei. Na verdade sete, porque aquele da Virginia Woof me deixou muito profunda e eu tive que parar. Os dias foram passando lentamente, lentos demais. Eu tinha vontade de subir até a lua e agradecer por ela finalmente ter aparecido. A solidão é uma delícia nas primeiras semanas e não tinha nenhum Giannechini para perguntar o meu signo ou pedir um cigarro. Eu já estava parecendo uma mulata e os meus cabelos estavam loiros, bem loiros, como nunca. Resolvi cortá-los como naquele livro do Hemingway, em que a mulher vai ficando super bronzeada e linda, mas louca, e corta o cabelo bem curtinho. Cortei bem curtinho também. Mas não teve nenhum triângulo amoroso e eu não estava em lua de mel como no livro. Quase seis meses depois eu voltei pra capital. Lola ficou em choque, e riu da minha magreza ou dar minha cor, não sei. Cheguei no meu apê e o um cheiro antigo exalou forte. Era um cheiro de amaciante com flores mortas. Abri a janela e comecei a abrir a correspondência. Para Raquel, de Laura. Abri. Era um desenho da minha sobrinha e uma carta "mamãe falou que você quer deixá-la louca, que você sumiu por pura maldade com ela. Eu não acho que você faria isso, porque você gosta muito da mamãe. Cadê você? Estou com saudade e vou acabar aprendendo a andar de bicicleta sozinha, você tá demorando demais para vir me ensinar. Eu já até aprendi a fazer brigadeiro, quer vir experimentar?" Olhei a data no envelope, caiu uma lágrima. A data era a mesma do dia que eu fui para a praia, há quase seis meses. Peguei o telefone correndo. "Laurinha?"
Reis e as musas
Sabe, uma vez eu ouvi a Lídia dizer coisas ao telefone. Eu sabia que ela falava com Ricardo. Eu tentei pegar na extensão do telefone para ouvir o que ele estava dizendo do outro lado da linha, mas não consegui. Só pude ouvi-la falar com a voz trêmula, aquela voz que a Lídia tinha quando chorava. Eu te amo, mas eu não quero mais chorar. Eu não quero mais me arrepender, e nem ficar doendo. Eu te amo também, e você poderia ser o pai do meu filho como você queria, mas não vai dar. Amar você dói o tempo todo. O nosso filho iria nascer de um corpo doído, um amor doído - ele iria nascer chorando e eu iria recebê-lo chorando também. Certo dia ele pararia de chorar, quando as cólicas passassem e os órgãos dele estivessem todos formados, mas eu não. Eu iria continuar chorando. O nosso amor nasceu errado, ele não vai parar de doer. Nunca mais ouvi Lídia falar de Ricardo, e Ricardo parou de escrever para ela. Mas todos nós sabemos que ela foi tola. Errou feio. Se despediu dele para parar de chorar e continuou chorando até o fim. Ricardo eu já não sei bem, dizem que ele conheceu outra mulher. Uma tal de Natália.
Resposta de jabuticaba
Era uma pergunta que ela não sabia responder, não queria decidir sozinha, queria uma resposta mágica. Como se ela pudesse perguntar a Deus e ele pudesse responder com um raio. Mas ela não acreditava em Deus e nem estava chovendo para que um raio caísse. E esse tipo de resposta óbvia de Deus era coisa de filme. Então ela lembrou que havia um saco cheio de jabuticabas na geladeira. Milhares e milhares de jabuticabas que a empregada havia colhido no parque vizinho. Ela decidiu que as comeria uma a uma até chegar a última jabuticaba - e se a última jabuticaba estivesse doce a resposta seria positiva, se estivesse azeda, negativa. Comeu, comeu e comeu até ficar cheia. Não cabiam mais jabuticabas no estômago, mas ela não ia desistir. Faltavam muitas ainda e ela começou a ficar com nojo da fruta. Mas continuou. Aprendeu a perceber quando a jabuticaba estaria doce e quando estaria azeda. Começou a escolher as mais azedas para se livrar logo delas, mas percebeu que dessa forma ela estaria escolhendo também a resposta que iria receber. Então foi comendo-as todas compulsivamente, como se fossem pipoca. Quando finalmente aquela bolinha preta imprestável era a última que lhe restava para comer, olhou-a, olhou-a, apertou-a e sentiu que estaria azeda pra burro, com um gosto horrível. Abriu a janela da cozinha e arremessou a jabuticaba bem longe.
sábado, 13 de outubro de 2012
Luis Fernando Mãos de Suor
Eu o conheci em uma formatura, em um casamento, em alguma cerimônia na qual os homens usam terno e gravata. Acho que era formatura mesmo, normalmente o primeiro palpite é o correto. Ele estava elegante, como a maioria das pessoas, mas me chamou a atenção porque o cabelo estava completamente bagunçado como se dissesse "estou arrumado só porque sou obrigado a estar", era o modo dele de se rebelar contra a formalidade da festa. Eu sabia que aquele não era o mundo dele. Conversamos por quase duas horas sem saber o nome do outro. Ele estudava psicologia na universidade estadual, morava no bairro nobre da zona sul e tinha 6 anos a mais do que eu. Luis Fernando. Meu telefone eu anotei na mão dele. E tinha certeza que ia virar um rabisco suado. Nada disso. Três dias depois ele me ligou. Me levou a um bar com samba de fundo musical e ficou falando de política. Eu era uma adolescente quase completamente alienada. Não sei porque ele insistiu no assunto depois que eu falei tanta besteira. Acho que ele só queria me impressionar. E impressionava, porque embora ele tivesse dito um monte de besteiras também, eu fiquei impressionada, porque qualquer coisa me parecia extremamente intelectual. Aquele dia nós nos beijamos. Eu não bebi, porque eu não bebia, e ele ficou intimidado com uma mulher (menina na verdade) não beber e pediu uma Sprite. O beijo dele era bom, não lembro bem, mas eu senti medo dele - não pela primeira vez. Eu tinha medo de homens que sabiam o que queriam. De homens que moravam sozinhos, de homens que falavam sério por mais de 4 frases, de homens que sabiam dirigir, de homens que não faziam a barba ou que parecessem intelectuais. É, talvez eu tivesse medo de homens que não fossem mais meninos. No dia seguinte ele ligou, e no seguinte também e no dia depois. Não consegui fugir mais e dessa vez o convite era para ir ao cinema. Eu tinha uma bolsinha pequena, que mais parecia uma carteira. E na hora de pagar, a moça do guichê me perguntou de um jeito meio rude: "você é modelo, garota?" Fiquei roxa de vergonha, mas também toda orgulhosa que a moça do guichê estava me elogiando na frente do meu paquera. Ele riu e falou: "Não, ela é atriz. Já fez duas novelas" E achou a resposta o máximo. Eu também. Ele olhou a minha fotinho na carteira de estudante e sorriu um largo sorriso, de apaixonado? Acho que sim. Entramos na sala. Eu deixei a minha bolsinha em cima da cadeira, ou acho que deixei, e precisei ir ao banheiro assim que o filme começou. Voltei, o trailer já tinha acabado e ele segurou a minha mão. Durante todo o filme a mão dele, em cima da minha, suava e ele a limpava na calça. Eu achei fofo. Demos um ou dois beijinhos e o filme acabou. Ele era um cara legal e me deixou em casa. Assim que eu abri a porta, reparei que não estava com a minha bolsinha. Olhei para trás e ele já havia partido. Eu não tinha celular porque naquela época ninguém tinha celular. Ele não me procurou nunca mais e eu acho que ele roubou a minha bolsinha.
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