quinta-feira, 27 de setembro de 2012
Ele assim
Eu soube que ele morreu quase um mês depois. Chorei porque foi um choque e não porque doeu. Fazia anos, muitos anos que eu não o via, nem tinha notícias dele. E eu nem me importava. Imaginava que ele era feliz do outro lado do mundo. Mesmo que essa palavra "feliz" carregue uma certa carga de hipocrisia e eu não concorde com ela. Ele parecia em paz. E que se dane se em fotos todo mundo pareça. A verdade é que eu nem me importava. Eu fui apaixonada por ele dos 12 aos 14 anos e não vou mentir que depois que ele foi embora ainda passei um ou dois anos me lamentando por ter perdido o grande amor da minha vida. Mas foi isso. Ele atravessou a minha adolescência. Talvez tenha mexido com algumas referências, talvez tenha me feito aprender inglês, talvez tenha feito com que eu fugisse de homens por um bom tempo. Passou. Foi isso. Ele faz parte do que eu me tornei em um determinado grau, mas sei lá, não vou fazer drama. A gente supera as pessoas. Doeu quando ele foi embora, há tantos anos, aquela foi de fato a despedida. A morte dele não. Pelas minhas contas tinha 28 anos (ou seria 29?). Esperei para saber se foi doença, acidente, destino. Foi dor. Dor de existir. Dor de sentir tanta dor. Ele não conseguiu aguentar. Eu não faço ideia o que aconteceu, só soube que ele se matou. No dia seguinte que eu soube, eu contei para um amigo: "você sabe o que significa a morte do primeiro amor?" Eu não sei. Será que até o trágico suicídio do meu primeiro amor tem algum significado simbólico? Mas o cara sofria, devia estar insuportável, como isso pode significar alguma coisa para alguém do outro lado do mundo, alguém tão do passado? Como isso pode significar qualquer coisa para qualquer pessoa? Ele não entendia algumas coisas que eu, como menina apaixonada, fazia para chamar a atenção dele e às vezes acabava me esnobando sem querer. Dava risadas divertidíssimas, e não entendia por que eu ficava brava. Mas depois ele se desculpava disfarçadamente, quando ninguém estava olhando. Ele era tímido e lindinho. O nosso adeus foi desencontrado. Eu fui procurá-lo na casa dele e naquele exato momento ele foi me procurar na minha casa. A gente se cruzou no meio do caminho, mas ele não conseguiu dizer nada, tímido que era, e só sorriu. Eu sorri de volta e a gente nunca mais se viu. Foi isso que ficou, e eu lembro dele assim: sorrindo um adeus.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Enquanto atravessava a cidade
"Me arrependi de você". Foi há algum tempo que ele me falou isso. Ele não olhou nos meus olhos, e por isso não viu que as palavras dele fizeram dos meus olhos uma janela emoldurando a chuva. Me doeu da unha aos ossos, pelos, cabelos. Me doeu o peito. Eu me vi atravessando a cidade e me perdendo em ruas escuras às três da manhã em direção ao apartamento dele. Me vi no apartamento dele, tentando disfarçar o meu medo daquilo tudo e ouvindo ele corrigir o que eu dizia, porque eu dizia muita bobagem. Eu me vi chorando na volta, cheia de álcool no sangue, entrando em todas as ruas do país antes de descobrir que eu estava na direção contrária da minha casa. Eu me vi chorando em casa, no banho, limpando o choro. Eu vi a quantidade de vezes que eu atravessei a cidade, que eu me enfiei no peito dele, na cozinha da casa dele, no mundo dele. Eu sempre fui sozinha e já havia dito a ele que tenho uma espécie de pacto com a solidão. Ele talvez não entendeu, talvez deixou passar, talvez esqueceu. Não me importa, ele me disse que se arrependeu.
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Asa de borboleta
Ela foi assaltada, como todo mundo é nessa cidade, como todo mundo nessa cidade sabe que vai ser um dia. Mas com ela foi diferente. E foi diferente porque ela é diferente de todo mundo nessa cidade. Ela buzina, dirige mal, corre, se estressa e grita palavrões horrendos no trânsito. Mas ela é quase de vidro. Não, vidro até que é resistente, ela é feita do mesmo material que a asa de uma borboleta. Você já tocou na asa de uma borboleta? Ela se desfaz na mão. Deixa um brilhinho nos seus dedos e desfaz. Ela é isso. E quando o adolescente quebrou o vidro do carro dela, ameaçou-a com uma faca e ela viu de perto aqueles olhos drogados, ela se desfez. Deixou um brilhinho no banco do carro e sumiu. É claro que o corpo dela estava ali, em lágrimas, mas quem a conhece sabe que ela de fato não estava. Eu tenho tanto ódio daquele menino, porque o que ele fez com aquela asa de borboleta vai ser difícil consertar. Ela já era medrosa, ficou mais. Já tinha medo de dirigir, tem mais. Ela já tinha pesadelos, acordava chorando. Eu não quero pensar como vão ser as noites dela agora. Eu queria mesmo era velar o sono dela a noite toda. E se ela acordasse num susto, de repente, eu faria que nem ela fez comigo quando o meu primeiro amor foi embora. Eu não conseguia dormir, chorava, chorava, chorava. Não conseguia fazer mais nada. Ela entrou no meu quarto no meio da madrugada, acendeu a luz, pegou um caderno no chão, uma caneta e fez um jogo da velha. "Vai, é a sua vez." Depois de duas partidas eu roncava que nem um porquinho na lama. Acordei doze horas depois. E foi assim durante várias noites, até eu cicatrizar aquele amor de criança. Eu queria jogar jogo da velha com ela, até o brilhinho da asa de borboleta voltar, até a borboleta voltar a achar que o mundo são flores. Porque o mundo não são flores, o mundo é horrível, o mundo são meninos drogados que ameaçam pessoas, eu não quero mais falar sobre o que o mundo é, me dá dor. Mas ela, ah, ela deixa brilhinho de borboleta nas mãos.
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
Enxergo bem sem eles
Detesto quando alguém pega os meus óculos pelas lentes. As digitais ficam marcadas e é chato para tirar. Quando ele pegou os meus óculos no meio da festa foi pior: os dedos dele estavam engordurados. Ele estava bêbado e cheirava a perfume feminino, como se tivesse acabado de sair de um abraço, ou pior: de uma mulher nua enrolada num lençol branco. Eu não aguentei aqueles dedos. A minha vontade era de pegar uma faca, como no filme Silêncio dos Inocentes, e fazer o que o Hannibal ameaça fazer com o pulso da mocinha. Essa era a minha vontade. Ao invés disso eu deixei ele pôr os dedos imundos nos meus óculos e ficar se exibindo que nem um babaca pela sala. Ainda bem que a música era alta o suficiente para que ninguém ouvisse o que ele gritava. Só eu ouvia, porque eu já havia quase decorado as coisas que ele dizia quando ficava bêbado. Eu saí, fui ao banheiro e procurei pelas gavetas: na casa da Bia sempre tinha uma cartela de antidepressivos no banheiro de visitas. Ela tinha uma filosofia infantil segundo a qual antidepressivos deviam ser compartilhados. A Bia era uma cretina. E eu estava certa: os comprimidinhos brancos estavam ali, lindões. Tomei um e fiquei sentada na privada esperando algum efeito. Quando eu acordei às 6h14 da manhã de sábado os meus óculos estavam imundos, jogados do lado do lixo. Eu estava toda torta no chão do banheiro, meu cabelo estava igualzinho ao do Wilson, o amiguinho-bola do Tom Hanks. Eu lembro de passar a noite tentando caber naquela droga de tapetinho minúsculo porque o chão ardia de tão gelado, mas eu tenho 1,68m de altura e o tapetinho tem o tamanho de um tapetinho. Lavei os óculos por 23 minutos sem perceber que eles já estavam brilhando, e que eu estava pensando na morte da bezerra. Não, eu estava pensando por que o V. havia largado os meus óculos no chão do banheiro. Fiquei imaginando que ele estava tão bêbado que nem me viu, ou tão bêbado que nem percebeu que eu era a Bela Adormecida. Depois que eu sequei as lentes, joguei os óculos no chão e como eles não quebraram, eu pisei em cima. Ao vê-los espatifados, eu comecei a chorar, mas eu enxergo bem sem eles. Saí pela casa à procura da minha bolsa, e quando a encontrei passei a ficar desesperada para sair dali, mas fui interrompida por uma lembrança. A foto. Eu tinha uma foto de nós dois dentro da bolsa: eu e o V. abraçados no cais. A represa atrás da gente foi cúmplice do nosso amor de cinco dias. Os exatos cinco dias mais felizes da minha vida, ou talvez os únicos. Rasguei a foto em mil pedaços. Tive vontade mesmo era de rasgar os meus olhos.
domingo, 9 de setembro de 2012
12, 14, 14.
Eu tinha doze anos quando meu pai saiu de casa. Era dia quatorze de outubro. Eu lembro direitinho da época, eu estava apaixonada pelo Bruno, um menino da minha sala. Eu não conseguia olhá-lo nos olhos, então lembro direitinho de todos os tênis que ele usava. O meu preferido era um que tinha um galo desenhado. A marca chamava Leco alguma coisa. Lecospirit? Não lembro. Meu pai não falou tchau pra mim e nem para os meus irmãos, é claro. A gente era muito pequeno. Mas a minha mãe foi sacana. Ela estava ressentida e cheia de amargura, então se vingou do meu pai por meio da gente. Ela entrou no quarto de brinquedos e falou bem alto: o papai foi embora. A gente nem olhou para ela. Eu estava montando uma casa para a Ariel, e a parte da cozinha sempre dava muito trabalho, eu tinha que me concentrar porque se caísse um copo, todos cairiam junto. Acho que o Dudu estava jogando tetris, não sei, ele não tirou os olhos das peças que caíam. O Lucas com certeza estava jogando Super Nintendo. Ele não largava aquela droga. A mamãe ficou furiosa. Meninos, o papai foi embora de casa. Ele não vai voltar, ele largou a gente. E começou a chorar. A gente já tinha se acostumado a ver a mamãe chorando, mas dessa vez ela caiu no chão. Ficou de joelhos. O Dudu foi o primeiro que levantou. Ele, em pé, tinha a altura da minha mãe de joelhos. Abraçou ela. Ele falou: o papai volta sim. Ele não consegue ficar muito tempo sem comer o seu bolo de laranja! Tadinho. Eu me aproximei. Confesso que fiquei com medo daquele abraço. Eu sabia que o papai não voltaria, eu sabia que aquela droga de abraço ia ficar registrado. Eu sabia que o buraco ia existir para sempre. O Lucas ficou olhando pra gente. Ele não veio. Ele desligou o videogame, passou do nosso lado e foi pro quarto. Eu pensei no Bruno da escola. Será que ele ia abraçar a mãe dele ou ele iria passar reto e ir pro quarto? Fiquei triste, porque eu não ia poder contar pro Bruno o que aconteceu. Eu nunca tinha falado com ele na vida. Aquele abraço durou uns cinco minutos, mas é claro que na minha cabeça parece que foram algumas horas. Parece que eu saí daquele abraço já adulta. Não sei mais o que aconteceu depois, não lembro do dia seguinte, mas eu lembro de duas semanas depois. O meu pai ligou. Eu vi que era ele logo de cara, porque ele pigarreou daquele jeito nojento. Eu atendi o telefone, eu tava sozinha em casa. A casa da Ariel tinha ficado linda, mas eu quase não conseguia andar no meu quarto. Eram ermários em miniatura, tapetinhos, cadeirinhas, tanta coisa. Demorei pra conseguir desviar de tudo e ir para o quarto da mamãe atender. Quando atendi ele ficou mudo. Eu esperei, esperei, e quando ele pigarreou eu falei: pai? E para a minha surpresa ele não desligou. Pai, eu acho que não gosto mais da Turma da Mônica. Acho que cansei de ver a Mônica sempre brava, o Cascão sujo. Sei lá, acho que eu não gosto mais de nenhum deles. Meu pai sorriu. Eu sei, porque eu sei. Eu queria que ele insistisse na Turma da Mônica, foi ele que me deu de presente a assinatura dos gibis. Eu queria que ele ficasse bravo, triste, que ele chorasse. Mas ele não chorou, ele sorriu. Eu tinha separado todos os gibis numa caixa, e deixado do lado de fora de casa, para o cara da reciclagem levar embora. Meu pai não desligou e eu sentei no braço do sofá, fingindo que era o colo dele. Desengatei a falar sem parar. Falei do Bruno, da professora de matemática que detestava ser professora, da casa que eu montei para a Ariel, do novo amigo ridículo do Lucas. Uma hora ele falou comigo. Eu quase caí do sofá. Ele disse: e a sua mãe? Eu menti. Ela está diferente, linda. Saindo muito. Mentira. Mamãe estava igualzinha, um pouco mais triste, mais gorda e nunca saia de casa. Ele suspirou, disse: Eu preciso ir, desculpa. E puff. Desculpa por que ele precisou ir naquele momento ou desculpa por que ele largou a minha mãe, eu e os meus irmãos pra sempre? Nunca mais eu ouvi o meu pai. Até ontem. Ligaram do hospital. Meu marido que atendeu. Câncer, dá pra tratar, o diagnóstico foi cedo. Venham sim. Quarto 14. No dia 14 de outubro meu pai saiu de casa. Eu entrei no quarto 14, e de repente eu perdoei o meu pai.
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Ela
Será que ela se incomoda se eu ficar olhando-a de longe, julgando os seus defeitos imaginários, imaginando como serão os seus filhos, invejando a sua calma?
Deixei o sangue pulsar
Eu ia escrever uma carta, mas o grito que vinha de dentro era alto demais. Uma carta não bastaria. Eu ia aparecer no meio da sala da casa dele, fechar a janela e dizer tudo o que eu queria dizer. Mas eu tive medo. Medo de entrar lá e não sair nunca mais - igual a todas as outras vezes. Eu ia ligar, eu ia ajoelhar, eu ia abraçá-lo até sair sangue. Mas eu não fiz nada disso. Eu me calei. Eu deixei o sangue pulsar. Eu o via de longe e guardava o grito, guardava o choro, guardava o coração de volta no peito. Eu não disse nada e ele foi embora. Ele desistiu tranquilamente, resignado e em paz. A mesma paz que ele me roubou.
domingo, 2 de setembro de 2012
Agosto
Agosto é um horror. Agosto é um mês amargo pra caramba e dói, como dói. Os dias passaram em agosto como pequenas lâminas na garganta de um gatinho. Foi assim que passou agosto. Mas ele passou, e deixou setembro no lugar. Largou-o na porta da minha vida. Eu não abri a maldita porta, porque agosto havia me feito sangrar, mas setembro não ficou parado: ele abriu a porta sozinho. Maldito agosto, maldito setembro, maldito gatinho.
sábado, 1 de setembro de 2012
O sol se punha tão lindo lá fora
Não sei por que exatamente mas passei a me sentir triste de novo. Senti a falta de um ritual, porque não ter ritual nenhum me pareceu ruim. Um ritual para abrir o iogurte, para levantar da cama, para me vestir. Eu nunca fazia as coisas do mesmo jeito. Acho até que era de propósito, para enganar o tempo. Eu me sentia desconexa do mundo, não só dele. Como se todo mundo estivesse fazendo alguma coisa e eu não estivesse fazendo nada. Como se eu estivesse dentro de uma sala sem nenhuma janela e não pudesse ver o sol se pôr. E o sol se punha tão lindo lá fora. Como se houvesse um silêncio medonho, que só eu escutava. Eu tinha coisas para falar para ele, mas quando a gente se encontrava, eu esquecia tudo. Isso não era bom. Eu não estava apaixonada, eu não estava nada. Estava acordando, comendo, dirigindo, fazendo esportes e dando risadas, as velhas gargalhadas de sempre, mas o que mais? E depois? E o meu peito? Não era para eu estar ansiosa para qualquer coisa? Não era para eu estar feliz ou triste ou com raiva ou? Eu não estava nem ou. Eu estava eu. E estar eu naquele momento não me despertava nenhum interesse. Eu estava apresentando um programa de TV e absolutamente ninguém estava assistindo. Dá para entender? Acho que ele não entendia, não fazia a menor ideia sobre o que eu estava falando. Eu também não fazia. A gente foi se afastando, eu não gostava mais de ficar sentada do lado dele sem fazer nada. Eu ficava ouvindo os pensamentos dele, e eram tão chatos. Me dava aflição. Quase falava para a mente dele calar a boca. Eu calava a minha. Ele, distraído como sempre, nem percebia a minha aflição. Sorria com aqueles olhos calmos. Fazia café, sentava, lia o jornal. Eu ali, quase desaparecendo de mim, mas ele não via nada. Olha aqui, descobriram a cura do câncer, linda. Que câncer, o meu? Não, linda, que bobagem é essa. E eu ficava calada. Pensava no câncer imaginário comendo os meus órgãos. Será que ia chover no meu funeral? Eu acho tão triste aquele clichê de chuva em funerais. Acho bonito. Aquela história completamente imbecil de que o céu estaria chorando. Eu queria uma tempestade no meu. As pessoas iam achar tão estranho. Elas não iam conseguir ouvir o próprio choro. Meu funeral ia ser cancelado, e eu ia ficar sozinha de novo. Quer mais café? Não, eu quero sumir um pouquinho. Mas eu não sumia. Eu nunca sumia quando eu queria. Só quando eu não queria. O jornal que ele estava lendo acabava, e me irritava o fato de ele ler até os classificados. Não tem mais nada para ler? Já leu tudo, a errata, tudo? Ele ria. Pensava que eu estava fazendo graça. Eu não dava risada. Eu aprendi que com ele eu não precisava rir. Esse negócio de ter que rir quando o chefe conta uma piada, de ter que rir quando um vendedor conta uma piada, quando sua irmã conta uma piada, quando você mesmo conta uma piada. Eu gostava de fumar na janela, estava com essa mania. Ficava passando frio e fumando. Adorava passar frio, era um sofrimento tão gostoso. Ainda mais porque a vista só era linda quando a janela estava aberta e sempre ventava muito. O cigarro me deixava sem fome e eu fui ficando magra, fazendo o meu desaparecimento não ser mais coisa da minha cabeça, eu estava literalmente desaparecendo. Ele vinha, colocava um cobertor sobre mim quase sempre, e eu deixava porque já estava espirrando demais. Naquela noite específica eu tirei o cobertor das minhas costas e resolvi sair. Para onde você vai? Para o fim do arco-íris, eu falei. Ok, mas então traz aquele iogurte de cenoura com mel, porque você tomou todos e eu fiquei sem nenhum. Trago, trago tudo que você quiser. Saí. Eu entrei no meu carro tão em paz. Uma paz estranha, estranha demais. Eu não me despedi dele, porque já estava voltando. Ele achou que eu ia pegar a minha bolsa e ficou esperando um beijo meu, mas eu saí sem bolsa. Fiquei cansada de dirigir sem destino, passou a ficar sem graça, então eu acelerei. O carro rodou na pista várias vezes antes de atravessar a grade de segurança e cair na pista de baixo. Ele rodou assim porque eu freei. Eu não sabia o que eu estava fazendo, e freei porque de repente me dei conta. Mas foi muito tarde. Quando chegou um homem, eu acho que era Deus não sei, ele era negro, falava estranho, nada com nada. Talvez eu não estivesse mais entendendo nada mesmo. Eu só vi a cara de pânico dele e mais nada. E foi só. E foi sem querer. Eu me morri, sem querer morrer. Se eu queria, eu queria bem pouquinho, mas me deixei levar por esse pouquinho. Mas olha, ainda bem que eu não fiquei para ver a minha família recebendo a notícia. Acho que eu morreria tudo de novo. Não devia ter feito aquela besteira. Eu devia ter tomado um remedinho, ter saído daquele apartamento, ter viajado com as minhas irmãs. Mas eu fui burra. Tudo bem. No final das contas, todo mundo me perdoou. Na verdade, só a Lidia me perdoou, porque só ela sabia que eu não tinha sofrido um acidente. As outras pessoas ficaram achando que a vida era injusta mesmo, e sentiam muita tristeza por mim. Ainda bem, acho que doeria mais para eles saber que eu não estava feliz, como o mundo manda a gente ser, e que eles podiam ter feito alguma coisa. Mas é bobagem isso, ninguém podia ter feito nada. Só chorar no meu funeral. Eu fiquei feliz depois de tudo, porque ninguém cancelou o meu funeral. Não choveu, mas ventou bastante. Foi um fenômeno meteorológico qualquer que fez uma espécie de furacão, sei lá o quê, e a defesa civil soltou um alerta dizendo que ninguém deveria sair de casa. Mas todo mundo saiu. Não faltou ninguém. Foi bonito. Foi triste. Foi assim. Eu me morri sem querer. E não tive mais volta.
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