segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Ele insistiu que "o acaso é feito à nossa semelhança" e repetiu-o diversas vezes. Você nem se importou. Disse qualquer coisa sobre os fatos e os homens e qualquer coisa dos livros. Eu me importei, e me importo que te falte em absoluto alguma vontade de saber sobre os mistérios como o acaso. Mas eu supero. Há dias em que você me mostra, maravilhado, que abelhas visitam as plantas que escorrem no seu consultório - e no instante seguinte sementes caem no chão, como uma chuva baixinha. Você filmou essa cena e me mostrou quase emocionado falando sobre os tempos certos da natureza. Nem me importa se o acaso é feito disso ou daquilo. Acaso ou mistério, eis você aqui, maravilhado com abelhas e sementes, do meu lado. 

sábado, 20 de novembro de 2021

Quatro horas da manhã

 Essa não é a primeira vez que eu tenho insônia
é possível que seja a mais longa: 
já faz duas horas e meia que estou acordada.
É a primeira vez que eu escuto a sua respiração durante uma insônia
você nem reparou que eu saí da cama.
Senti pena da nossa vizinha barulhenta pela primeira vez
é madrugada e ela fez uma tapioca para o aplicativo de entregas.
Será que ela já estava acordada?
Fiz um chá de camomila para ver se me dá sono
esqueci de tomar, esfriou.
A camomila já estava velha também.
O relógio do seu avô me disse que são quatro horas. 
Enquanto espero o sono chegar comprei uma peça de teatro virtual
Esperando Godot, do teatro Oficina.
Vou esperar você acordar para assistirmos juntos.


sábado, 25 de setembro de 2021

O tempo todo

é o tempo todo assim 
essa vontade de ficar
perto da sua boca
ouvir falar
ou ficar
em silêncio 
que vontade de beijar
o tempo todo me dá

Nova York, dentro do ego

Por todos os lados
dá para se viajar
por aqui e lá fora
Nova York, dentro do ego
qualquer lugar
com dinheiro, cápsula 
ou remédio
sempre tem para onde ir
embora se saiba 
amplamente
por todos os médicos 
indivíduos e viajantes
é o peito do outro
o melhor lugar
para se viajar 

Eu já sabia

eu já sabia
que iria te encontrar
quando eu larguei tudo
só ficava impaciente 
na sala de espera
não sabia, não sabia quando 
e aí você apareceu 
todo de cerveja, ajoelhado 
diante de mim
ouvindo o meu chamado 
nas palavras de Joyce
quando eu desci aquelas escadas 
eu já sabia
que eu ia morar com você

terça-feira, 14 de setembro de 2021

 Se essa jornada
que aqui mesmo acaba
for esse tanto solitária
me mostre onde ela deságua
quero sentir gosto de nada

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Nem reparo o Tietê

Itacaré, Itaparica
Taipu e Algodões
manguezal e Mata Atlântica
coco fresco e cacau
acontece que o seu colo
toque, peito 
o seu cheiro
todo dia é tudo cinza
arranha-céu, eu sinto o gosto
de fuligem e esgoto
o tempo seco arde o olho
eu só vejo camelô
acontece que o seu toque 
colo, jeito, sua voz
troco tudo, deixo o troco
da nascente até a foz
Maraú ou Camamu
nem reparo o Tietê
seca o tempo, não tem coco
mas o que arde mesmo o olho
é a falta de você

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

e só

cansada
impotente
tão parte
humana
estranha
insuficiente
pedaço de pó
permanente
e só

Dói tudo

Menos o corpo
dói tudo 
de dentro
pensar e dizer
e deixar de dizer
dói lembrar
esquecer é pior
o que é de dentro 
e não é corpo 
às vezes arde
a impunidade
e a dificuldade 
de impedir
dói só de olhar
mesmo de longe
ou lá de dentro 
o mundo arde 
e o pior 
é fazer parte.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

É você?

verdes ou azuis
lindos os seus olhos
e suas mãos
que seguraram as dela
até o culto e a ciência
a risada sempre ao fundo
ironia ou brincadeira
seriedade só se for
no preparo da lasanha
no momento da história
cada vez com mais detalhe
e sapatinho de cristal
ainda bem que era você
quando eles viajavam
para nos ensinar tricô
contar mentira, dar risada
alimentar e nutrir
mas vovó, tem uma coisa
que a gente sempre quis saber:
o relato tão preciso
cabelos loiros, olhos claros
encantadora de ratinhas
é você a Cinderela?





quarta-feira, 30 de junho de 2021

Última

Fui a última a chegar 
trouxe pássaro
planta, horta, altar
Fui a última a chegar
ocupei as gavetas do quarto
enchi a pia de vidros
a parede lá de baixo
quadro, estante
troquei o detergente 
pintei flores no azulejo
ocupei o armário vermelho
até na cozinha
tem gaveta só minha
Fui a última a chegar
já ocupo tanto espaço 
ainda tem o mamoeiro 
que insiste em tentar
já eram três
e pra vocês 
eu fui a última a chegar
vou tirar o mamoeiro
já ocupo tanto espaço
nem precisa mais falar

Seu passado

Elas nunca foram grandes
no entanto
em horas específicas
me parecem imensas
os meus dentes me ajudam
roem devagar
cada unha
até acabar 
aquele dia na cama
falávamos sobre a falta
você queria mais memória  
e eu queria menos
do seu passado
todo o tempo, em cada quadro 
na pia, nos quartos
nos tênis que eu visto
minha unha estava tão grande 
meus dentes me ajudaram 
aquela noite
até sangrar

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Entre nós

O que é o tempo pra gente:
treze anos atrás ou pra frente?
Entre nós.
Entramos. Lá se foram:
dois anos.

O meu fevereiro 
o seu em setembro
é tempo também
os meses que tem
entre nós?

Apenas mais nós
os meses e anos 
quiçá os segundos
que há entre nós.




sexta-feira, 16 de abril de 2021

Instante

As imagens variavam entre girassóis, cachoeiras e montanhas. Eram mesmo lindas, mas contrastavam demais com o barulho da broca e o cheiro de produto químico. Pensei em concentrar nas paisagens e me desligar, mas me lembrei do título do meu livro preferido: "Be here now" ou "Esteja Aqui Agora". Mesmo que o aqui agora seja uma cadeira de dentista e uma pessoa esteja me perfurando com uma pequena broca? Fiquei tentando entender por que estar aqui agora seria bom para mim. 

No livro, o autor diz que o exercício é não desejar estar em outro lugar, porque essa é a fonte da dor. O exercício é tentar observar de fora, sem se apegar aos sentimentos e emoções ou aos pensamentos que pudessem vir. Observei os campos de lavanda que agora apareciam na tela do computador do consultório e pensei se ao observar aquelas imagens eu não estaria forjando uma fuga. Uma fuga do aqui e agora. 

Fechei os olhos e tentei focar na inspiração e expiração. Percebi meu corpo relaxar. Sentir dor e estar naquela cadeira com uma broca enfiada na boca era melhor do que não sentir nada. Pensei nos anjos do Win Wenders observando os humanos e desejando coisas mundanas como o cheiro do café, sem poder as ter. 

A experiência humana nem sempre parece boa, mas ela é como deve ser. Estar presente na hora em que o meu dente é perfurado é onde eu preciso estar e mais ainda: é onde eu quero estar, nesse enorme exercício de agradecer o instante. 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Na garganta

Tenho uma poesia 
entalada na garganta.
Às vezes eu sinto o seu gosto.
Me sobe um refluxo,
dá azia 
e a poesia 
não sai do lugar.
Tentei pintar
assobiar
subir num palco 
disfarçar
mas a poesia entalou.
Fincou as raízes
com a ponta do dedo
ela pinta de rosa
vez ou outra 
a visão.
Sai não. 
Como pomo de adão
a poesia é de lá:
fincada
engasgada
entalada na garganta. 



domingo, 4 de abril de 2021

Insignificância

 Manchei a minha mão 
com limão 
pude ver como ela ficará
quando eu envelhecer
Então fiz o que sempre faço 
me entristeci 
com minha insignificância
demorei para me lembrar
das pétalas das flores
insignificantes também
sempre caindo
ainda assim me doeu lembrar 
eu e a rosa
pouco importamos

Se eu soubesse explicar 
esse choro preso 
talvez não fizesse poesia 

terça-feira, 9 de março de 2021

 Eu sonho com o mato

 moro no morro


Se o sangue faltar

se o sangue faltar 
na minha calcinha
o ar vai faltar 
no meu peito 
se você for sugar 
o meu corpo 
roerei minhas unhas
aos poucos
se você for pedir 
o meu tempo 
pedirei ao banco 
perdão
quem vai segurar a outra mão
se eu tiver que te dar
para atravessar?
eu sei que deve ser bom 
eu entendo o frisson 
mas se o sangue faltar
a barriga crescer
eu tiver que doar
tudo que tenho 
é tão pouco
meu filho
tão pouco 
que não sei se vai dar


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

No fundo do lago

Deixei cair meu diamante no fundo do lago 
os dias passaram a chover 
todos nós nos encharcamos
Eu sinto o meu brilho mas não o vejo mais
nos faltou tempo para buscá-lo
e máscara para ver o fundo 
Eu sinto o meu brilho
no fundo do lago.

domingo, 10 de janeiro de 2021

O seu foco

Outro dia foi o avião entrando na nuvem de chuva
normalmente é o vôo do gavião ou do urubu
podem ser também o sabiá e o bem-te-vi 
pousados
borboletas e mariposas
distraídas
até árvores gigantes
podem ser o seu alvo.
Você para sua moto e diz:
"repara"

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Corrosivo e violento

Há caos e violência 
nas tempestades que surgem
de céus escuros
levam tudo e se calam
Há brutalidade e força
nas árvores suntuosas sustentando-se
fincadas na terra com garras
nos rios que correm corroendo as margens
nas cobras, aranhas e veneno
Há dificuldade 
ignorância
corrosão e morte
na natureza
o tempo todo a morte
inesperada e triste
entretanto
maior do que a morte
mais venenoso
corrosivo e violento
Há o homem.




quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Fios

Os satélites,
astronautas e extraterrestres
se atentos
quando olham para baixo
são os únicos que podem ver
os fios invisíveis que nos conectam
às luzes acesas nos prédios
aos cães que latem no bairro
aos rios debaixo das cidades
às sirenes
aos vivos e aos nem tanto
emaranhados 
como uma bola de lã



As suas coisas espalhadas

Elas me observam andar pela casa, chorar escrever  quando é minha vez de observá-las choro um pouco mais por tudo que carregam viagens, lemb...