sábado, 1 de setembro de 2012

O sol se punha tão lindo lá fora

Não sei por que exatamente mas passei a me sentir triste de novo. Senti a falta de um ritual, porque não ter ritual nenhum me pareceu ruim. Um ritual para abrir o iogurte, para levantar da cama, para me vestir. Eu nunca fazia as coisas do mesmo jeito. Acho até que era de propósito, para enganar o tempo. Eu me sentia desconexa do mundo, não só dele. Como se todo mundo estivesse fazendo alguma coisa e eu não estivesse fazendo nada. Como se eu estivesse dentro de uma sala sem nenhuma janela e não pudesse ver o sol se pôr. E o sol se punha tão lindo lá fora. Como se houvesse um silêncio medonho, que só eu escutava. Eu tinha coisas para falar para ele, mas quando a gente se encontrava, eu esquecia tudo. Isso não era bom. Eu não estava apaixonada, eu não estava nada. Estava acordando, comendo, dirigindo, fazendo esportes e dando risadas, as velhas gargalhadas de sempre, mas o que mais? E depois? E o meu peito? Não era para eu estar ansiosa para qualquer coisa? Não era para eu estar feliz ou triste ou com raiva ou? Eu não estava nem ou. Eu estava eu. E estar eu naquele momento não me despertava nenhum interesse. Eu estava apresentando um programa de TV e absolutamente ninguém estava assistindo. Dá para entender? Acho que ele não entendia, não fazia a menor ideia sobre o que eu estava falando. Eu também não fazia. A gente foi se afastando, eu não gostava mais de ficar sentada do lado dele sem fazer nada. Eu ficava ouvindo os pensamentos dele, e eram tão chatos. Me dava aflição. Quase falava para a mente dele calar a boca. Eu calava a minha. Ele, distraído como sempre, nem percebia a minha aflição. Sorria com aqueles olhos calmos. Fazia café, sentava, lia o jornal. Eu ali, quase desaparecendo de mim, mas ele não via nada. Olha aqui, descobriram a cura do câncer, linda. Que câncer, o meu? Não, linda, que bobagem é essa. E eu ficava calada. Pensava no câncer imaginário comendo os meus órgãos. Será que ia chover no meu funeral? Eu acho tão triste aquele clichê de chuva em funerais. Acho bonito. Aquela história completamente imbecil de que o céu estaria chorando. Eu queria uma tempestade no meu. As pessoas iam achar tão estranho. Elas não iam conseguir ouvir o próprio choro. Meu funeral ia ser cancelado, e eu ia ficar sozinha de novo. Quer mais café? Não, eu quero sumir um pouquinho. Mas eu não sumia. Eu nunca sumia quando eu queria. Só quando eu não queria. O jornal que ele estava lendo acabava, e me irritava o fato de ele ler até os classificados. Não tem mais nada para ler? Já leu tudo, a errata, tudo? Ele ria. Pensava que eu estava fazendo graça. Eu não dava risada. Eu aprendi que com ele eu não precisava rir. Esse negócio de ter que rir quando o chefe conta uma piada, de ter que rir quando um vendedor conta uma piada, quando sua irmã conta uma piada, quando você mesmo conta uma piada. Eu gostava de fumar na janela, estava com essa mania. Ficava passando frio e fumando. Adorava passar frio, era um sofrimento tão gostoso. Ainda mais porque a vista só era linda quando a janela estava aberta e sempre ventava muito. O cigarro me deixava sem fome e eu fui ficando magra, fazendo o meu desaparecimento não ser mais coisa da minha cabeça, eu estava literalmente desaparecendo. Ele vinha, colocava um cobertor sobre mim quase sempre, e eu deixava porque já estava espirrando demais. Naquela noite específica eu tirei o cobertor das minhas costas e resolvi sair. Para onde você vai? Para o fim do arco-íris, eu falei. Ok, mas então traz aquele iogurte de cenoura com mel, porque você tomou todos e eu fiquei sem nenhum. Trago, trago tudo que você quiser. Saí. Eu entrei no meu carro tão em paz. Uma paz estranha, estranha demais. Eu não me despedi dele, porque já estava voltando. Ele achou que eu ia pegar a minha bolsa e ficou esperando um beijo meu, mas eu saí sem bolsa. Fiquei cansada de dirigir sem destino, passou a ficar sem graça, então eu acelerei. O carro rodou na pista várias vezes antes de atravessar a grade de segurança e cair na pista de baixo. Ele rodou assim porque eu freei. Eu não sabia o que eu estava fazendo, e freei porque de repente me dei conta. Mas foi muito tarde. Quando chegou um homem, eu acho que era Deus não sei, ele era negro, falava estranho, nada com nada. Talvez eu não estivesse mais entendendo nada mesmo. Eu só vi a cara de pânico dele e mais nada. E foi só. E foi sem querer. Eu me morri, sem querer morrer. Se eu queria, eu queria bem pouquinho, mas me deixei levar por esse pouquinho. Mas olha, ainda bem que eu não fiquei para ver a minha família recebendo a notícia. Acho que eu morreria tudo de novo. Não devia ter feito aquela besteira. Eu devia ter tomado um remedinho, ter saído daquele apartamento, ter viajado com as minhas irmãs. Mas eu fui burra. Tudo bem. No final das contas, todo mundo me perdoou. Na verdade, só a Lidia me perdoou, porque só ela sabia que eu não tinha sofrido um acidente. As outras pessoas ficaram achando que a vida era injusta mesmo, e sentiam muita tristeza por mim. Ainda bem, acho que doeria mais para eles saber que eu não estava feliz, como o mundo manda a gente ser, e que eles podiam ter feito alguma coisa. Mas é bobagem isso, ninguém podia ter feito nada. Só chorar no meu funeral. Eu fiquei feliz depois de tudo, porque ninguém cancelou o meu funeral. Não choveu, mas ventou bastante. Foi um fenômeno meteorológico qualquer que fez uma espécie de furacão, sei lá o quê, e a defesa civil soltou um alerta dizendo que ninguém deveria sair de casa. Mas todo mundo saiu. Não faltou ninguém. Foi bonito. Foi triste. Foi assim. Eu me morri sem querer. E não tive mais volta.

2 comentários:

Paula disse...

Dizem que a morte é o começo de um novo ciclo. Às vezes a gente precisa morrer mesmo, às vezes é só um pouquinho, às vezes tem que ser por inteiro...

Anônimo disse...

Não morra jamais. Nem um pouquinho. Nem em sonho.
Amo você.

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