terça-feira, 24 de março de 2020

Invisível

Poucas pessoas sabem
poucas, muito poucas
é invisível
não há ciência nem razão
é da ordem do mistério
indizível
ontem descobri
quando vi mais um morto
no leito do hospital
é proposital
da ordem do castigo
recomeço
da lição
é preciso matar
para chamar a atenção
é preciso morrer
para se fazer ouvir
silêncio
exílio
solidão
ele voltou
sem converter água
sem rosto ou apóstolo
quer que escutemos
devagar
atenção
lembre-se do amor
esqueceu?

segunda-feira, 23 de março de 2020

O que eu sinto não é isso

o que eu sinto não é isso
quando você abre aquele quarto
trancado a sete ou oito chaves
passado e pó me fazem espirrar
o que eu sinto é invenção e preenchimento
talvez nem sejam da ordem do sentir
tanto faz
eu invento o seu passado
crio imagens, cenas no jantar
ela sentada no seu colo
o que eu sinto não é isso
eu não sei
talvez seja vontade de apagar
eu também tenho passado
não dentro de um quarto
no mesmo quintal
na mesma casa
numa pasta
em tudo quanto é canto
o meu passado eu já perdi
o que eu sinto é o seu passado


sexta-feira, 6 de março de 2020

se ao menos

Me sinto cansada
minha perna esquerda dói
os olhos querem cerrar
te tocar eu não consigo
é tanto o meu cansaço
nesse fardo de viver
se ao menos eu soubesse
onde é que acende a luz

quinta-feira, 5 de março de 2020

Por trás dos olhos

Eu não tinha te notado quando cheguei na plataforma. Mal consegui reparar no seu rosto ou na cor das suas roupas e, mesmo assim, eu nunca mais me esqueci. Aquele olhar vazio, privado de um humano por trás dos olhos. Eu nunca pegava o metrô, mas naquele dia ia me poupar muito tempo. Comprei o bilhete e desci correndo para entrar no vagão. Mesmo assim perdi o primeiro trem e tive que esperar pelo segundo. Tinha pouca gente ali, duas ou três pessoas além de mim. Talvez cinco ou dez. Era o meio da tarde de uma quarta-feira. Três e quatorze da tarde. Eu lembro da hora exata porque tinha acabado de olhar o relógio quando você gritou: "O trem está chegando. Preste atenção que a sua vida vai mudar." Não consegui nem esboçar algum tipo de pergunta porque o trem chegou e você se atirou. Nem um porquê. Um 'e se' ou um 'como'. Nada. Não tem um dia sequer que eu não pense em você, no seu olhar vazio, na dor inexplicável que eu senti aquele dia. Eu não sei dizer se a minha vida mudou como você falou, tudo está sempre mudando. De fato você virou parte de mim, como talvez não teria virado. De uma maneira que eu não gostaria. Me fez ter medo da morte quando ela era só mais um detalhe.

As suas coisas espalhadas

Elas me observam andar pela casa, chorar escrever  quando é minha vez de observá-las choro um pouco mais por tudo que carregam viagens, lemb...