segunda-feira, 20 de março de 2017

A alma do dente

No começo do ano eu precisei tratar o canal de um dente. É um processo dolorido, dá aflição, não é legal. Eu fiquei na sala de espera tentando entender como funcionaria, eu já tinha tratado canal outra vez mas fazia muito tempo e eu nunca perguntei como era. Quando o odontologista me chamou na sala, eu reparei que ele era um senhor de setenta e poucos anos, cheio de energia e até com um certo carinho. Ele pegou uma prótese gigante de um dente igual ao que eu iria tratar e começou a me explicar delicadamente como seria o processo. "Primeiro nós abrimos aqui, depois tiramos isso aqui. Imagina que o dente é um rio e que eu estou tirando toda a água do rio, todos os galhos, tudo. Se um dente tem alma, nós vamos extrair a alma do dente." Eu olhei pela janela do consultório e me lembrei de Sísifo. A especialidade daquele dentista é tratar canal. Todos os dias de cinco a dez pacientes vão no consultório dele para tirar a alma dos seus dentes infeccionados. Todos os dias ele pega uma prótese gigante do dente infeccionado e mostra para o paciente que o canal é como um rio. Sísifo foi condenado a levar uma pedra ao topo da montanha, mas toda vez quando chegava no topo a pedra rolava de volta para baixo. Depois de anos executando essa tarefa, provavelmente Sísifo entendeu que o que importava não era que a pedra fosse deixada no topo da montanha, mas como a pedra era levada: com mau humor, tristeza, resignação? Ou assobiando, cantando, batucando na pedra? Durante o meu procedimento, eu percebi que o meu dentista tratava canais com o cuidado que se tem ao lidar com uma alma, mesmo que de um dente. Todos os dias a pedra dele rolava de volta para o chão, mas dava pra ver que ele subia a montanha assobiando.

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