Sempre que eu tenho medo, qualquer medo em qualquer situação, eu tento mentalizar o tamanho da Terra diante do Universo. O medo não some, mas ele fica proporcional a minha insignificância.
quinta-feira, 23 de março de 2017
segunda-feira, 20 de março de 2017
A alma do dente
No começo do ano eu precisei tratar o canal de um dente. É um processo dolorido, dá aflição, não é legal. Eu fiquei na sala de espera tentando entender como funcionaria, eu já tinha tratado canal outra vez mas fazia muito tempo e eu nunca perguntei como era. Quando o odontologista me chamou na sala, eu reparei que ele era um senhor de setenta e poucos anos, cheio de energia e até com um certo carinho. Ele pegou uma prótese gigante de um dente igual ao que eu iria tratar e começou a me explicar delicadamente como seria o processo. "Primeiro nós abrimos aqui, depois tiramos isso aqui. Imagina que o dente é um rio e que eu estou tirando toda a água do rio, todos os galhos, tudo. Se um dente tem alma, nós vamos extrair a alma do dente." Eu olhei pela janela do consultório e me lembrei de Sísifo. A especialidade daquele dentista é tratar canal. Todos os dias de cinco a dez pacientes vão no consultório dele para tirar a alma dos seus dentes infeccionados. Todos os dias ele pega uma prótese gigante do dente infeccionado e mostra para o paciente que o canal é como um rio. Sísifo foi condenado a levar uma pedra ao topo da montanha, mas toda vez quando chegava no topo a pedra rolava de volta para baixo. Depois de anos executando essa tarefa, provavelmente Sísifo entendeu que o que importava não era que a pedra fosse deixada no topo da montanha, mas como a pedra era levada: com mau humor, tristeza, resignação? Ou assobiando, cantando, batucando na pedra? Durante o meu procedimento, eu percebi que o meu dentista tratava canais com o cuidado que se tem ao lidar com uma alma, mesmo que de um dente. Todos os dias a pedra dele rolava de volta para o chão, mas dava pra ver que ele subia a montanha assobiando.
sábado, 18 de março de 2017
No último andar
Num domingo frio e cinza como hoje
ficaríamos os dois no último andar
com os pés gelados
e a janela aberta.
Você tentaria levantar,
mas eu te puxaria de volta.
Pensaríamos no dia, faríamos planos.
O dia, sem esperar que estivéssemos prontos,
iria passando sutilmente
pela janela do nosso quarto
no último andar.
ficaríamos os dois no último andar
com os pés gelados
e a janela aberta.
Você tentaria levantar,
mas eu te puxaria de volta.
Pensaríamos no dia, faríamos planos.
O dia, sem esperar que estivéssemos prontos,
iria passando sutilmente
pela janela do nosso quarto
no último andar.
terça-feira, 7 de março de 2017
Cinzas
Você já tentou pegar cinzas na mão? Não dá, elas se dissolvem nos dedos. Quando eu morrer, quero virar cinzas. Quero ser soprada no ar e virar vento. No máximo ser soprada no mar da Califórnia e virar onda para algum surfista pegar. Não quero ocupar espaço na Terra com um buraco e uma grande caixa de madeira. Para que guardar os meus ossos? Quem inventou isso de guardar ossos? Depois que a pessoa já virou vento, já foi embora para o Universo, por que guardar os seus ossos? Nosso planeta já está tão entulhado, tão saturado, tão dolorido. Quando eu morrer, quero ser cinzas.
sexta-feira, 3 de março de 2017
Sangue
Uma vez, quando eu tinha nove anos, o meu avô veio passar uns
dias em casa. Eu não me lembro muito bem como foi essa estadia, mas me lembro
que ele estava doente. Não lembro que doença ele tinha, mas lembro de vê-lo tossir muito. Uma
vez, ele tinha acabado de sair do banheiro e eu entrei para buscar alguma coisa quando vi sangue no
tapete e no chão. Eram pequenas gotas, algumas eram marrom. Fui dormir com um certo medo ou algum sentimento que eu não soube identificar. Uns dias depois, talvez semanas ou meses, eu acordei no meio da noite
para ir ao banheiro. Olhei para baixo e vi a minha calcinha com uma mancha de
sangue. Era uma mancha marrom igual ao sangue do meu avô. Entrei em pânico, pensei em morte e fui
dormir achando que eu estava com a doença do vovô.
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