domingo, 9 de setembro de 2012

12, 14, 14.

Eu tinha doze anos quando meu pai saiu de casa. Era dia quatorze de outubro. Eu lembro direitinho da época, eu estava apaixonada pelo Bruno, um menino da minha sala. Eu não conseguia olhá-lo nos olhos, então lembro direitinho de todos os tênis que ele usava. O meu preferido era um que tinha um galo desenhado. A marca chamava Leco alguma coisa. Lecospirit? Não lembro. Meu pai não falou tchau pra mim e nem para os meus irmãos, é claro. A gente era muito pequeno. Mas a minha mãe foi sacana. Ela estava ressentida e cheia de amargura, então se vingou do meu pai por meio da gente. Ela entrou no quarto de brinquedos e falou bem alto: o papai foi embora. A gente nem olhou para ela. Eu estava montando uma casa para a Ariel, e a parte da cozinha sempre dava muito trabalho, eu tinha que me concentrar porque se caísse um copo, todos cairiam junto. Acho que o Dudu estava jogando tetris, não sei, ele não tirou os olhos das peças que caíam. O Lucas com certeza estava jogando Super Nintendo. Ele não largava aquela droga. A mamãe ficou furiosa. Meninos, o papai foi embora de casa. Ele não vai voltar, ele largou a gente. E começou a chorar. A gente já tinha se acostumado a ver a mamãe chorando, mas dessa vez ela caiu no chão. Ficou de joelhos. O Dudu foi o primeiro que levantou. Ele, em pé, tinha a altura da minha mãe de joelhos. Abraçou ela. Ele falou: o papai volta sim. Ele não consegue ficar muito tempo sem comer o seu bolo de laranja! Tadinho. Eu me aproximei. Confesso que fiquei com medo daquele abraço. Eu sabia que o papai não voltaria, eu sabia que aquela droga de abraço ia ficar registrado. Eu sabia que o buraco ia existir para sempre. O Lucas ficou olhando pra gente. Ele não veio. Ele desligou o videogame, passou do nosso lado e foi pro quarto. Eu pensei no Bruno da escola. Será que ele ia abraçar a mãe dele ou ele iria passar reto e ir pro quarto? Fiquei triste, porque eu não ia poder contar pro Bruno o que aconteceu. Eu nunca tinha falado com ele na vida. Aquele abraço durou uns cinco minutos, mas é claro que na minha cabeça parece que foram algumas horas. Parece que eu saí daquele abraço já adulta. Não sei mais o que aconteceu depois, não lembro do dia seguinte, mas eu lembro de duas semanas depois. O meu pai ligou. Eu vi que era ele logo de cara, porque ele pigarreou daquele jeito nojento. Eu atendi o telefone, eu tava sozinha em casa. A casa da Ariel tinha ficado linda, mas eu quase não conseguia andar no meu quarto. Eram ermários em miniatura, tapetinhos, cadeirinhas, tanta coisa. Demorei pra conseguir desviar de tudo e ir para o quarto da mamãe atender. Quando atendi ele ficou mudo. Eu esperei, esperei, e quando ele pigarreou eu falei: pai? E para a minha surpresa ele não desligou. Pai, eu acho que não gosto mais da Turma da Mônica. Acho que cansei de ver a Mônica sempre brava, o Cascão sujo. Sei lá, acho que eu não gosto mais de nenhum deles. Meu pai sorriu. Eu sei, porque eu sei. Eu queria que ele insistisse na Turma da Mônica, foi ele que me deu de presente a assinatura dos gibis. Eu queria que ele ficasse bravo, triste, que ele chorasse. Mas ele não chorou, ele sorriu. Eu tinha separado todos os gibis numa caixa, e deixado do lado de fora de casa, para o cara da reciclagem levar embora. Meu pai não desligou e eu sentei no braço do sofá, fingindo que era o colo dele. Desengatei a falar sem parar. Falei do Bruno, da professora de matemática que detestava ser professora, da casa que eu montei para a Ariel, do novo amigo ridículo do Lucas. Uma hora ele falou comigo. Eu quase caí do sofá. Ele disse: e a sua mãe? Eu menti. Ela está diferente, linda. Saindo muito. Mentira. Mamãe estava igualzinha, um pouco mais triste, mais gorda e nunca saia de casa. Ele suspirou, disse: Eu preciso ir, desculpa. E puff. Desculpa por que ele precisou ir naquele momento ou desculpa por que ele largou a minha mãe, eu e os meus irmãos pra sempre? Nunca mais eu ouvi o meu pai. Até ontem. Ligaram do hospital. Meu marido que atendeu. Câncer, dá pra tratar, o diagnóstico foi cedo. Venham sim. Quarto 14. No dia 14 de outubro meu pai saiu de casa. Eu entrei no quarto 14, e de repente eu perdoei o meu pai.

5 comentários:

Anônimo disse...

Gostei. Só faltou um pouco de doçura, que é uma das coisas que mais gosto em você, ESCRITORA.
KEEP WALKING.

Anônimo disse...

Amo tudo o que você escreve. Amo você.

Letícia Cardoso disse...

É incrível o quanto eu fiquei presa no texto. E o quanto eu quis ler ele de novo.

Muito bonito, não achei que faltou doçura. Eu senti que houve uma dor imensa durante todo o tempo. Uma dor fechada de quem estava construindo casas quando o pai foi embora e engoliu o choro. De quem não falou se chorou ou como doeu. Senti que houve dor sim, principalmente porque ela não foi mencionado. AO contrário disso, você só declarou inocência e perdão no texto. Achei bonito.

Letícia Cardoso disse...

mencionada*

Anônimo disse...

Eu realmente detesto quando a sua dor ecoa a minha.

eu ajunto a coragem

eu só quero o que desejo porque  há o seu abraço o seu tempero o seu tempo, temperamento  há tempos eu percebo  minha vida, meu sossego  bem...