terça-feira, 27 de agosto de 2019

ex-jogador

o tempo não sabe a hora certa
ele diz, e corta a carne no prato
me sento no seu colo para ouvir
não posso reclamar, ele fala, não vivi uma vida morna
observo suas manchas de perto
imagino as suas casas anteriores, o filho que ele não teve
as paixões que arrancaram raízes
o pintor que era sogro e agora é paciente
eu gosto de ouvi-lo contar
as batatas no seu prato parecem aguadas, sem gosto
mas o pedaço de carne brilha
ele dá mais um gole no vinho bem na hora de dizer
que não sabe o que esperar
que não pode mais jogar rugby
ele tem o corpo que eu gosto, de ex-jogador
ele mostra sua taça maior do que a minha
e eu bebo bem na hora que digo
que agora eu faço parte
também não sei o que esperar, mas sei que é muito
não fui a primeira mulher a chegar
mas eu cheguei bem agora, nesse momento preciso
eu trouxe comigo o meu tempo, o meu corpo
o meu órgão que bate
eu não digo nada mas penso
o tempo sabe a hora exata

sábado, 24 de agosto de 2019

Noite em claro

A primeira vez que eu passei a noite em claro
eu estava no acampamento de férias
eu e o menino ruivo que tinha a voz rouca
ficamos mexendo na fogueira semi apagada,
olhando o céu ficar claro
espantando espíritos com gravetos
no dia seguinte eu lembro de olhar no espelho
e ver aqueles sulcos roxos debaixo dos olhos
depois eu dormi e elas foram embora, as olheiras
agora não é mais assim
as olheiras estão sempre aqui,
mesmo que eu durma o dia todo
me lembram que os anos estão passando
não adianta espantar espíritos com gravetos
eles vem de qualquer jeito
levam um pouco da nossa vida
e deixam os nossos olhos marcados

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Sonhos

Uma vez eu sonhei que você me dizia
amar é trocar o vazio
pelo transbordar
você tocou uma música pra mim
no violão
e no final me disse
que os seus olhos saíram de órbita
eu não sei o que isso quer dizer
estou sempre cheia de sonhos
com mensagens secretas
você decifra e não me conta
mas é tão fácil de ver
que estou transbordando


segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Procuro uma casa

eu olho as ruas no mapa e elas não são muito perto da sua
nem do metrô
nem do meu salário
penso em desistir mas minha mãe me chama da cozinha
eu preciso de espaço
de silêncio
as ruas tem nomes de mulheres tristes
Linda Ferreira da Rosa, aposto que não era linda
nem de nenhuma rosa
eu nunca paguei aluguel
só o supermercado
e as plantas
a sua voz se dá bem com qualquer poesia
sua risada com a minha
as ruas com árvores não são mais caras
elas já vem com passarinhos
mas o aluguel não muda por isso
de repente eu percebo que procuro uma casa
bem dentro da sua gaveta

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Chanel número 5

Eu abri a gaveta e encontrei no canto, ao lado de alguns livros, um Chanel igual ao meu. Mas não era o meu. Era de alguém que esteve ali antes de mim. Uma mulher que não conheço, nunca vi. Fechei a gaveta com vontade de ir embora. Tinha um pouco da mulher na gaveta. No cômodo, no lado direito da cama, em todos os seus lençóis. Em tudo seu tinha um pouco da mulher que não era eu. Quanto dela teria em você, nos seus pensamentos, no seu jeito de sorrir? Sentei na cama e você falou comigo, mas eu não ouvi. Só queria ir para casa. A minha casa. Abrir a minha gaveta e encontrar as minhas coisas, os meus livros, o meu cheiro. Acordei. Aquilo foi só um sonho: a mulher, a gaveta, o perfume. Um sonho que podia ser real, mas não tinha nenhum perfume na gaveta. Te contei do meu sonho no café da manhã. Desci as escadas rumo ao portão e você sussurrou: psiu, a gaveta é toda sua. Sorri. E a mulher dissolveu-se de tudo quanto é canto.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A chegada

Meu pai, romântico, sempre me falou dos sinos que tocariam
anunciando a chegada do amor.
Ele é um dos poucos homens que viu o amor a olho nu.
Andou por aí, teve muitas mulheres,
mas sempre foi só da minha mãe.
Quando eu digo que estou apaixonada, ele rebate: "ouviu os sinos?"
Exagerado.
Sinos que tocam sem que ninguém ouça é esquizofrenia.
Tem remédio pra isso.
Quando eu te vi, encurvado no braço da cadeira
o rosto cansado, o cheiro de cerveja,
é claro que não houve sinos, eu nem esperava
mesmo que o beijo encaixasse, o abraço, a conversa.
Ontem você leu poesia para mim
sua voz cuidadosa respeitava os versos,
o tom que pede cada palavra, a calma
um ruído interrompeu a leitura, mas você não parou
me olhou sorrindo como se nem percebesse
o ensurdecedor badalar.

As suas coisas espalhadas

Elas me observam andar pela casa, chorar escrever  quando é minha vez de observá-las choro um pouco mais por tudo que carregam viagens, lemb...