quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Quando saio, não volto

 Se tenho que sair
[tentei fincar as mãos 
no corrimão 
da escada de casa]
saio a passos lentos
sem desejo
um pouco de medo
depois da porta eu me desfaço
despedida do que sou
quando saio, não volto 
crescem unhas
cabelos, o suor que escorre
minha pele se transforma
a que volta não sou eu 
menos tonta 
mais cansada
melancólica
Se eu tenho que sair
é melhor que eu não saia
não existe um retorno
é outra a mão que finca 
na escada, no corrimão.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

vou deixando

Não tem grandes movimentos
eu me esforço 
seria um desastre completo?
as transformações
sobreviveríamos?
Por enquanto estou aqui
não tenho medo
vou deixando 
o que será de mim
se eu não fizer nada
e se eu fizer
será pior?

we met on the air

 We met on the air
my hair let loose
your hair in a hat
questions about jobs 
religion and the lack of it
films
out of every film that has ever been made
we love the same one. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

você, um beco

Querosene
explosão 
admite a melhora
admite a melhora da casa com as plantas
uma samambaia para cada lado
tirar dois livros da estante
uma begônia
você aguentaria
mais uma separação?
eu vejo um berço 
você, um beco
que casamento resiste
tamanha interrogação
no querosene, explosão.



quinta-feira, 4 de julho de 2024

separação

 vou ficar com o que é meu
a poltrona
metade do sofá
o frigobar
o resto é seu 
a cama, o carro
os quadros
os filhos.

por todos os lados

 você assiste o futebol
faz piada sobre o rubens
caminha com seu tênis
toma banho 
fala com seu filho
segue a vida 
de sempre
eu tento
eu tento desviar
atravessada
da morte espalhada
por todos os lados

Vingança

 Quando a gente se separar
vou roubar de você
o livro azul
do fernando lemos
o pessoa pode ficar
é o lemos que eu quero
com aquela assinatura laranja
seu nome e a data
o ano que nos conhecemos
eu sei que é mentira
você encontrou o livro depois
quero guardar essa mentira
roubar de você
o livro que você roubou 


Você me arrancou 
tanto sol
a carne
a ferida
arde exposta 
no sol 
que você me arrancou

quarta-feira, 3 de julho de 2024

quero saber quem, no fim
vai nos buscar em delfim
nas montanhas
sem japão
nem a mão 
feita por nós


minha barriga me pariu
toda triste
sem vontade de ser
de sair pra passear
sem chorar
o parto não foi normal
eu não tinha nenhum quilo 
nem um filho
minha barriga pariu

Eu não erro mais

Foi quando eu esqueci a ração?
Ou aquela hora na praia?
ou antes?
quanto antes?
qual foi o momento?
o que eu esqueci?
quanto eu deixei de ganhar?
eu ri quando não devia?
demorei demais para sair?
ou para chegar?
foi quando eu pintei o número da casa?
ou quando a pia entupiu?
se não tivesse entupido
se eu tivesse ido mais rápido 
se a passagem fosse a certa
se eu não tivesse errado o caminho
eu não erro mais o caminho
eu juro

Rasgar

Rasgar, rasgar
rasgar fotos
diários velhos
cartas antigas
queimar talvez
queimar as lembranças
guardadas no armário
da casa dos pais
brinquedos também
que foram os seus
preferidos
para que guardar
para que, meu amor
para quem?

terça-feira, 28 de maio de 2024

Deu certo

Devo ter sido bem precisa.
Ter visto você no passado
- quando eu tinha 7 e você vinte.  
Devo ter te visto passar. 
Ficou guardado na memória -
o cabelo que espeta, a sobrancelha desenhada
o degrau que eu gosto de subir.
O seu molde eu já tinha, 
foi só eu pedir.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Asas do Desejo

 O meu filme preferido da vida mostra uma humanidade desolada no pós-guerra e dois anjos que observam tudo de cima. Eles veem apenas a beleza de estar vivo e consideram a humanidade seres de sorte. Invejam que o homem pode sentir gosto, sentir dor, amar. Invejam que podem sentir o gosto do café e o toque do jornal nas mãos. Penso nesse filme quase todos os dias, mas principalmente quando começo a desanimar. Tento olhar tudo de cima e me lembrar. 

terça-feira, 5 de março de 2024

eu ajunto a coragem


eu só quero o que desejo porque 
há o seu abraço o seu tempero
o seu tempo, temperamento 
há tempos eu percebo 
minha vida, meu sossego 
bem no meio do seu peito
eu só quero o que quero porque 
há também tavares, talvez pandeiro, 
o seu cheiro
o seu corpo inteiro
sem você não há razão
eu só quero - e eu posso não querer -
se assim for, se for assim
se você disser assim
eu ajunto a coragem
ao desejo dar um fim
eu só quero o que quero 
porque eu quero a vida toda
o tempo todo
para todo o viver 
essa vida, essa vida desse jeito
essa vida toda vida
essa vida com você



domingo, 3 de março de 2024

que virá

 me promete 

me promete que virá

eu não sei mais ser quem sou 

quero ser que eu serei 

quando você chegar

não sei se vai ser tarde

se vai dar tempo

se terei o que ensinar

me promete

me promete que virá

não houve

Teve sangue,
teve o fluxo normal das coisas
teve um traço só, eu queria dois
eu queria furacão 
eu queria rompimento
a vida nova que viria
meu corpo virando colo
esse mês foi só mais um 
que não houve a sua vinda

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Nova York

Tudo lotado 
gente por todo lado
ambulância
fumaça
trombada de ombro
de vez em quando um parque
resistindo e disfarçando
a ebulição
ocorrendo por debaixo
das ruínas corroendo
de alma a poste
nada em pé.


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Desde então não te obedeço

Desde então não te obedeço.
Tenho ficado sozinha, 
não tenho mais hora para sair.
Meu tapete vazio do seu corpo,
as coisas sem seu cheiro, todo o jardim.
Até o seu prato eu já tirei. 
O seu pedido no fim da tarde,
eu sempre obedeci.
Desde então não te obedeço,
mas eu sinto a sua pata, invisível, 
me pedindo pra sair.

 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

O berro

Aquele berro
ecoou, ecoou 
vibrou lá dentro
sentia nas vias
semanas depois
nos tubos do corpo 
no ouvido
nos dedos
ficou na memória
o berro que eu
furiosa berrei
quicou no seu peito
voltou para o meu 
o berro não foi
o berro voltou.


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Bem-sucedido

A gata pula em cima de moscas
e depois as deixa fugir.
Você deita sempre no meu pé, 
para garantir que vai sentir 
se eu levantar dali. 
Quando você julga que é hora
faz todo tipo de inconveniência para eu te levar
bafo na cara, posar na minha frente, 
uma lambidinha sutil
até eu me tocar que é mesmo hora.
Depois do passeio (a gata continua com as moscas)
você deita um pouco mais relaxado
preguiçoso, nem quer mais saber:
mais um dia bem-sucedido. 

domingo, 6 de agosto de 2023

Destomados

 A farmacêutica está tomada
alimentícia também
a musical, cinematográfica
também a do ramo do lixo
da moda
dos créditos de carbono
dos bancos
dos bancos de reserva
a de fazer taxas, leis
multas
a de fazer barbies:
as indústrias estão tomadas.
Olhemos em volta: 
nós é que ainda estamos 
destomados.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Laranja e preta

 Uma lágrima já havia rolado
a seguinte na iminência
quando fui agarrar o lenço
o vi
e duas novas pintas 
em seu pequeno corpo
laranja e preta
foi durante a noite que ele mudou?
Ele ia de um lado para o outro 
feliz com o aquário limpo
olhei no relógio: 
a hora de chorar 
havia passado


terça-feira, 1 de agosto de 2023

Parte do jardim

No inverno o jardim fica tão morto
a grama seca
os esqueletos de plantas subindo os muros
o silêncio da ausência de pássaros
a falta de cor
Nos resta resistir
lembrar que irão voltar
folhas e cores e a vontade de viver
lembrar que é sempre assim
ano após ano
a morte sonda no inverno
arranca folhas
esvazia a cor, impede o sol
depois parte
levando parte do jardim.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

espuma da praia

 Ele filmou a espuma da praia
enquanto eu dormia
três anos depois encontrei a imagem
"quem filmou a espuma da praia?"
eu nunca me perguntaria,
só podia ter sido ele.

Não é minha.

Eu sei o que mudou.
São as noites:
agora estão mais curtas.
Passei a noite toda e vi
com os meus dois olhos.
Antes eu escrevia um livro 
em uma noite
e dessa vez
o que saiu foi uma frase.
É uma pena,
mas a culpa
não é minha. 

a filha dele

a filha dele chama clara
ele nunca conheceu outra
eu só conheci um 
que me apresentou
fernando pessoa.

Multidão

Há uma multidão 
eu tenho que sair do quarto
descer
desviar, relevar
uma multidão
e eu não tenho 
onde me esconder

36 argumentos

"Fala para ele, Clara."
Na hora trinta e seis
argumentos se separam de mim
me largam no canto da estrada
fico
calada.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Jamais saberemos

Nos olhamos sem entender
não sabemos e jamais saberemos
seguimos nosso trabalho e nossas vidas
de vez em quando nos olhamos 
desconfiadas, seguimos
sabemos que há interrogações 
flutuando em nossas cabeças
nada falamos
falhamos em compreender
de oito bilhões de seres
193 países, 38 mil cidades
viemos juntas
justo as três: 
as três irmãs.

sábado, 25 de março de 2023

Folha

Tem vezes que eu viro folha
e a chuva que me molha
e no mato ou na mata 
eu me escondo
Quando folha eu viro
o concreto me atravessa
eu me desfaço
faço conta que sou gente
me disfarço, eu me esforço
nada adianta nesse intuito 
Eu sou muda
sofrida, cansada 
eu sou folha.

sábado, 4 de março de 2023

melancolia

a melancolia que era
uma vez você me disse que eu não era normal
que havia algo especial
mas era uma melancolia ao seu lado 
todo domingo eu queria chorar
não adiantava nos mudar de país
era você

Tedioso

 Seria um futuro tedioso
e eu gosto de pensar que rejeitei
quando vejo suas listas
em aplicativos aleatórios
mesmo com as viagens
e casas espalhadas pelo mundo
e carros e jantares
suas listas sempre ali:
tedioso

Se tivesse que escolher

Eu sentei na mesa
do nono melhor 
restaurante do mundo
bebi o drink
e pensei
eu troco qualquer coisa 
do mundo inteiro 
se tivesse que escolher
entre qualquer coisa
e você 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Finalmente é noite

 Finalmente é noite
eu posso confessar ao breu
o dia todo foi em vão
paredes vazias me lembram
quadros que poderiam estar ali
unhas compridas são só
unhas roídas iminentes
finalmente é noite
ouço o breu me confessar
o dia todo foi em vão 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

eu não devia

O medo me faz chorar às vezes
o que será de mim
e as mortes no litoral 
o que será daquela gente
semana passada eu fui no Dom
a cada garfada um lembrete
eu não devia chorar

O americano

Escuto calada suas falas
entre uma garfada e outra
você pertence a outra dimensão
outro planeta terra
não sei o que responder
a distância é tanta
a língua é outra
nos entendemos mas
eu não entendo nada

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A lua nascendo

Eu gosto assim
a casa vazia
só eu
sem pressa
sem som na escada
a lua nascendo 
atrás do prédio 
mal dá pra ver
por horas a fio
sem sucesso
eu tento 

Carnaval

Um dia eu entendi o carnaval
não mais
duas pessoas me cansam
depois de algumas horas
não posso imaginar
três mil 

Alguém pisou

 Há encontros a minha espera
finjo não lembrar que os marquei
ignoro o relógio e o celular
da cadeira eu ouço o trânsito 
sexta-feira é um formigueiro 
depois que alguém pisou

Peneira de aço

 Não se limpa um rio com um copo
como no meu sonho 
eu nadava no rio imundo 
um homem tentava limpá-lo
há um homem fora do sonho 
que faz isso com uma peneira grande
de aço
ele passa a peneira nas praias
pega bitucas e pedaços de plástico
o capitalismo nem se move

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

deu de ombros

a gata veio ver 
o que eu fazia
no escuro
me viu chorar:
deu de ombros.

Pode ser que melhorem

ele recitava poesia às vezes para mim
eu parava tudo para escutar
às vezes aos prantos
nunca mais escrevi as minhas também
nunca mais fiz desenhos para ele
esse foi um ano difícil 
eu desanimei muitas vezes
tenho saudades das poesias
acho que as coisas vão melhorar
talvez eu volte a desenhar
se ele recitar poesias para mim 
pode ser que as coisas melhorem

Sol

 não vou tomar sol hoje
o sol deixa a gente mais alegre
hoje eu não quero estar alegre
quero melancolia
quero escrever um pouco
depois eu tomo sol e apago tudo

caracol

tem um caracol comendo a minha planta
e tantas coisas comem as nossas coisas
e a gente come de tudo também
dei um peteleco no caracol
alguém precisa dar um basta.

casa preta

 Quando dou meu endereço eu escrevo:
(casa preta)
porque minha casa é toda preta
por dentro não
por dentro é cheia de tijolos e livros
e obras de arte e às vezes eu

três

Três e eu:
três cadeiras na mesa de jantar 
e a minha
três pratos de carne 
e o meu
tem dias que somos quatro
nos outros são três 
e eu.

Faca afiada

 Uma vez, aos sete ou oito anos de idade,
eu peguei uma faca de cozinha da minha mãe
bem afiada
levei até a sala, escura, e fiquei atrás do sofá pensando
que eu poderia fazer o que eu quisesse com aquela faca
depois de algumas horas
devolvi a faca para a cozinha e fui dormir. 

paixão

a paixão transtorna a vida da gente
faz a gente sair da nossa casa, tão gostosa a casa
cheia de coisas que gostamos, coisas nossas
e ir para a casa do outro
cheia de gente que a gente aceita
coisas que nunca escolheríamos
comidas que não gostamos 
depois a paixão passa e deixa a gente ali 
sem a nossa casa.

feliz natal

 você resolve as coisas 
o meu cérebro é tão mal resolvido 
dia sim dia não eu sofro 
por algo que eu poderia ter feito 
ou algo que poderia ter deixado para trás
me faz um favor
escreve outra cartinha 
aquela não tinha nada
eu nem sei o que quer dizer 
feliz natal

sábado, 8 de outubro de 2022

ficamos de fora

quem ocupa os espaços 
de decidir e guiar
não quer proteger ou cuidar
quer armas, garimpo
mansões em dinheiro 
vivo 
enquanto morrem de fome
de sede, de dor
aos seus pés
humanos 
e quem ocupa os espaços
destrói nossa fonte de chuvas
a ciência, a mulher, as escolas
e tudo que há 
ficamos de fora desses espaços
pasmos
catando migalhas e ossos
na fila do abismo
indignados
sem força, sem voz
sem chão, sem vez
sem ar.
as nozes, descobri outro dia, fazem bem para o cérebro. é fácil de lembrar pois elas têm formato de cérebro. meu vizinho passou horas limpando o chão do quintal com a mesma água que nos falta mês sim, mês não. me senti péssima por não ter berrado com ele, mas eu prefiro jogar mato na grama dele e outras frutas que estragam das minhas árvores. covarde. outro dia pensei que não escrevo mais poesia porque eu descobri que nunca escrevi poesia. escrevi pensamentos, dei a eles um espaçamento bonito e um lugar numa página em branco. depois, detestei tudo que escrevi, mas eles já não eram mais só meus. acho tão interessante pensar que vivemos agora o começo do fim deste mundo como conhecemos. estamos exterminando tudo e não há o que fazer porque o lado do extermínio é maior do que o lado da consciência. estamos no titanic e somos os violinistas, o próprio iceberg, a falta de botes e o capitão. somos o mar gelado. são tempos interessantes. sinto um misto de alegria de estar vivo com uma pergunta do por que estou viva agora, justo agora. eu e minhas mesquinharias, minha vontade de comprar um tênis novo, meu medo de ser mãe, minha vontade de fugir pro mato. não entendo por que as pessoas não se entopem de nozes, se fazem tão bem para o cérebro.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

eu subi no palco 
subi o tom de voz
subi num avião até Los Angeles
subi para não ser só
mas foi só 
depois que desci 
até o fundo de dentro 
do fundo do poço 
de dentro de mim
percebi:
somos todos 

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Gabriela

 Ela lava a roupa enquanto fala comigo 
apesar da voz doce, é mulher firme - às vezes até dura
tem cabelos finos e cheirosos, sempre cheirosos
eu só posso me lembrar: ela vive longe.
Me sinto inchada, cheia de sangue que não desce
o telefone às vezes falha e eu perco uma palavra
anotei outra: "processos"
sobre os rios que são a vida
cheios de margens compressoras
mas também cachoeiras e casas na montanha.
Desabafo sobre os exageros do outro 
e ela me receita cuidar da fala:
sou eu que sinto - o outro é alheio. 
Alguém ao lado dela diz que vai nadar
reconhecemos a benção que é entrar 
numa terça-feira no mar.
Eu olho para os prédios e sonho
- com ela eu sempre sonho.  
Sinto desaguar o sangue preso e me lembro:
ela é sempre um cuidado.  


terça-feira, 24 de maio de 2022

Sem um amor

Deve ser difícil não poder
apoiar-se no amor
nos dias em que as pernas falham
Deve ser difícil chegar e não ver
o olhar do amor 
esperando na escada
O quão difícil deve ser
despertar sem o amor
dar beijos e risada
Não imagino ocupar
neste mundo um lugar
sem ao lado um amor
que veja junto o sol se pôr

terça-feira, 3 de maio de 2022

Covas

 Nada mais se faz neste mundo 
além de cavar covas 
para todo humano que vive
para os próximos que virão
o homem cava sua cova 
escova os dentes e vai dormir. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

não se deixa de ser

 Eu até quero ser 
mas o medo é maior
está escrito falha e culpa 
em tudo quanto é lugar
ser mãe é sempre
o tempo todo 
não se deixa de ser
o medo é maior
a gente mal sabe se ser
como é que vai saber
ensinar para outro ser
como é que se é?

Crise

 Ansiedade 
ânsia de vômito 
coração disparado
tantas demandas 
pânico, calafrio
desespero do desespero 
do mundo
me sinto e sou 
impotente inoperante
inadequada 
e nada me resta a não ser
o invisível vômito no chão
caneta e caderno na mão
inventar poesia

segunda-feira, 28 de março de 2022

Para o contato

O mecanismo
dos sentidos alheios
é um mistério.
São criptografadas
as falas do outro,
o contato.
É um mistério 
como funcionam
relações sem tradução 
imediata.
Todo o tempo se empilham
toda sorte de símbolos
mal decifrados
nos fundos dos olhos 
e ouvidos desleixados
do outro.
Inventarão algum dia
para o contato
tradução?

sábado, 26 de março de 2022

132 semanas

Nunca inchou minha barriga
o tempo não passou em semanas
não fiz olhos, narizes e nem coração
eu nunca esperei num quarto vazio
meus braços não foram cama
nunca tive nenhuma extensão
No entanto há dias no quarto
tão só quanto uma mãe
recusam a minha comida
não respondem minhas perguntas
desprezam os meus pedidos
os filhos que eu não tive me rejeitam
a mãe que eu não fui não sai de mim. 

quinta-feira, 3 de março de 2022

um mundo sem homens

Sozinha na mesa 
almocei cheia de medo
da grande extinção em curso
- um mundo sem homens
roí meu restinho de unha
pedi a conta, vim correndo
para o homem que me acolhe
enquanto homens amputam outros homens
enquanto homens guardam tudo para si
há um homem 
com uma caixa de ferramentas
conserta paredes e pessoas paradas
logo o mundo vai ficar sem os homens
abraço este homem e fico tão triste 
só queria poder avisar
antes do céu cair: 
este homem só faz consertar

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Ele insistiu que "o acaso é feito à nossa semelhança" e repetiu-o diversas vezes. Você nem se importou. Disse qualquer coisa sobre os fatos e os homens e qualquer coisa dos livros. Eu me importei, e me importo que te falte em absoluto alguma vontade de saber sobre os mistérios como o acaso. Mas eu supero. Há dias em que você me mostra, maravilhado, que abelhas visitam as plantas que escorrem no seu consultório - e no instante seguinte sementes caem no chão, como uma chuva baixinha. Você filmou essa cena e me mostrou quase emocionado falando sobre os tempos certos da natureza. Nem me importa se o acaso é feito disso ou daquilo. Acaso ou mistério, eis você aqui, maravilhado com abelhas e sementes, do meu lado. 

sábado, 20 de novembro de 2021

Quatro horas da manhã

 Essa não é a primeira vez que eu tenho insônia
é possível que seja a mais longa: 
já faz duas horas e meia que estou acordada.
É a primeira vez que eu escuto a sua respiração durante uma insônia
você nem reparou que eu saí da cama.
Senti pena da nossa vizinha barulhenta pela primeira vez
é madrugada e ela fez uma tapioca para o aplicativo de entregas.
Será que ela já estava acordada?
Fiz um chá de camomila para ver se me dá sono
esqueci de tomar, esfriou.
A camomila já estava velha também.
O relógio do seu avô me disse que são quatro horas. 
Enquanto espero o sono chegar comprei uma peça de teatro virtual
Esperando Godot, do teatro Oficina.
Vou esperar você acordar para assistirmos juntos.


sábado, 25 de setembro de 2021

O tempo todo

é o tempo todo assim 
essa vontade de ficar
perto da sua boca
ouvir falar
ou ficar
em silêncio 
que vontade de beijar
o tempo todo me dá

Nova York, dentro do ego

Por todos os lados
dá para se viajar
por aqui e lá fora
Nova York, dentro do ego
qualquer lugar
com dinheiro, cápsula 
ou remédio
sempre tem para onde ir
embora se saiba 
amplamente
por todos os médicos 
indivíduos e viajantes
é o peito do outro
o melhor lugar
para se viajar 

Eu já sabia

eu já sabia
que iria te encontrar
quando eu larguei tudo
só ficava impaciente 
na sala de espera
não sabia, não sabia quando 
e aí você apareceu 
todo de cerveja, ajoelhado 
diante de mim
ouvindo o meu chamado 
nas palavras de Joyce
quando eu desci aquelas escadas 
eu já sabia
que eu ia morar com você

terça-feira, 14 de setembro de 2021

 Se essa jornada
que aqui mesmo acaba
for esse tanto solitária
me mostre onde ela deságua
quero sentir gosto de nada

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Nem reparo o Tietê

Itacaré, Itaparica
Taipu e Algodões
manguezal e Mata Atlântica
coco fresco e cacau
acontece que o seu colo
toque, peito 
o seu cheiro
todo dia é tudo cinza
arranha-céu, eu sinto o gosto
de fuligem e esgoto
o tempo seco arde o olho
eu só vejo camelô
acontece que o seu toque 
colo, jeito, sua voz
troco tudo, deixo o troco
da nascente até a foz
Maraú ou Camamu
nem reparo o Tietê
seca o tempo, não tem coco
mas o que arde mesmo o olho
é a falta de você

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

e só

cansada
impotente
tão parte
humana
estranha
insuficiente
pedaço de pó
permanente
e só

Dói tudo

Menos o corpo
dói tudo 
de dentro
pensar e dizer
e deixar de dizer
dói lembrar
esquecer é pior
o que é de dentro 
e não é corpo 
às vezes arde
a impunidade
e a dificuldade 
de impedir
dói só de olhar
mesmo de longe
ou lá de dentro 
o mundo arde 
e o pior 
é fazer parte.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

É você?

verdes ou azuis
lindos os seus olhos
e suas mãos
que seguraram as dela
até o culto e a ciência
a risada sempre ao fundo
ironia ou brincadeira
seriedade só se for
no preparo da lasanha
no momento da história
cada vez com mais detalhe
e sapatinho de cristal
ainda bem que era você
quando eles viajavam
para nos ensinar tricô
contar mentira, dar risada
alimentar e nutrir
mas vovó, tem uma coisa
que a gente sempre quis saber:
o relato tão preciso
cabelos loiros, olhos claros
encantadora de ratinhas
é você a Cinderela?





quarta-feira, 30 de junho de 2021

Última

Fui a última a chegar 
trouxe pássaro
planta, horta, altar
Fui a última a chegar
ocupei as gavetas do quarto
enchi a pia de vidros
a parede lá de baixo
quadro, estante
troquei o detergente 
pintei flores no azulejo
ocupei o armário vermelho
até na cozinha
tem gaveta só minha
Fui a última a chegar
já ocupo tanto espaço 
ainda tem o mamoeiro 
que insiste em tentar
já eram três
e pra vocês 
eu fui a última a chegar
vou tirar o mamoeiro
já ocupo tanto espaço
nem precisa mais falar

Seu passado

Elas nunca foram grandes
no entanto
em horas específicas
me parecem imensas
os meus dentes me ajudam
roem devagar
cada unha
até acabar 
aquele dia na cama
falávamos sobre a falta
você queria mais memória  
e eu queria menos
do seu passado
todo o tempo, em cada quadro 
na pia, nos quartos
nos tênis que eu visto
minha unha estava tão grande 
meus dentes me ajudaram 
aquela noite
até sangrar

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Entre nós

O que é o tempo pra gente:
treze anos atrás ou pra frente?
Entre nós.
Entramos. Lá se foram:
dois anos.

O meu fevereiro 
o seu em setembro
é tempo também
os meses que tem
entre nós?

Apenas mais nós
os meses e anos 
quiçá os segundos
que há entre nós.




sexta-feira, 16 de abril de 2021

Instante

As imagens variavam entre girassóis, cachoeiras e montanhas. Eram mesmo lindas, mas contrastavam demais com o barulho da broca e o cheiro de produto químico. Pensei em concentrar nas paisagens e me desligar, mas me lembrei do título do meu livro preferido: "Be here now" ou "Esteja Aqui Agora". Mesmo que o aqui agora seja uma cadeira de dentista e uma pessoa esteja me perfurando com uma pequena broca? Fiquei tentando entender por que estar aqui agora seria bom para mim. 

No livro, o autor diz que o exercício é não desejar estar em outro lugar, porque essa é a fonte da dor. O exercício é tentar observar de fora, sem se apegar aos sentimentos e emoções ou aos pensamentos que pudessem vir. Observei os campos de lavanda que agora apareciam na tela do computador do consultório e pensei se ao observar aquelas imagens eu não estaria forjando uma fuga. Uma fuga do aqui e agora. 

Fechei os olhos e tentei focar na inspiração e expiração. Percebi meu corpo relaxar. Sentir dor e estar naquela cadeira com uma broca enfiada na boca era melhor do que não sentir nada. Pensei nos anjos do Win Wenders observando os humanos e desejando coisas mundanas como o cheiro do café, sem poder as ter. 

A experiência humana nem sempre parece boa, mas ela é como deve ser. Estar presente na hora em que o meu dente é perfurado é onde eu preciso estar e mais ainda: é onde eu quero estar, nesse enorme exercício de agradecer o instante. 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Na garganta

Tenho uma poesia 
entalada na garganta.
Às vezes eu sinto o seu gosto.
Me sobe um refluxo,
dá azia 
e a poesia 
não sai do lugar.
Tentei pintar
assobiar
subir num palco 
disfarçar
mas a poesia entalou.
Fincou as raízes
com a ponta do dedo
ela pinta de rosa
vez ou outra 
a visão.
Sai não. 
Como pomo de adão
a poesia é de lá:
fincada
engasgada
entalada na garganta. 



domingo, 4 de abril de 2021

Insignificância

 Manchei a minha mão 
com limão 
pude ver como ela ficará
quando eu envelhecer
Então fiz o que sempre faço 
me entristeci 
com minha insignificância
demorei para me lembrar
das pétalas das flores
insignificantes também
sempre caindo
ainda assim me doeu lembrar 
eu e a rosa
pouco importamos

Se eu soubesse explicar 
esse choro preso 
talvez não fizesse poesia 

terça-feira, 9 de março de 2021

 Eu sonho com o mato

 moro no morro


Se o sangue faltar

se o sangue faltar 
na minha calcinha
o ar vai faltar 
no meu peito 
se você for sugar 
o meu corpo 
roerei minhas unhas
aos poucos
se você for pedir 
o meu tempo 
pedirei ao banco 
perdão
quem vai segurar a outra mão
se eu tiver que te dar
para atravessar?
eu sei que deve ser bom 
eu entendo o frisson 
mas se o sangue faltar
a barriga crescer
eu tiver que doar
tudo que tenho 
é tão pouco
meu filho
tão pouco 
que não sei se vai dar


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

No fundo do lago

Deixei cair meu diamante no fundo do lago 
os dias passaram a chover 
todos nós nos encharcamos
Eu sinto o meu brilho mas não o vejo mais
nos faltou tempo para buscá-lo
e máscara para ver o fundo 
Eu sinto o meu brilho
no fundo do lago.

domingo, 10 de janeiro de 2021

O seu foco

Outro dia foi o avião entrando na nuvem de chuva
normalmente é o vôo do gavião ou do urubu
podem ser também o sabiá e o bem-te-vi 
pousados
borboletas e mariposas
distraídas
até árvores gigantes
podem ser o seu alvo.
Você para sua moto e diz:
"repara"

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Corrosivo e violento

Há caos e violência 
nas tempestades que surgem
de céus escuros
levam tudo e se calam
Há brutalidade e força
nas árvores suntuosas sustentando-se
fincadas na terra com garras
nos rios que correm corroendo as margens
nas cobras, aranhas e veneno
Há dificuldade 
ignorância
corrosão e morte
na natureza
o tempo todo a morte
inesperada e triste
entretanto
maior do que a morte
mais venenoso
corrosivo e violento
Há o homem.




quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Fios

Os satélites,
astronautas e extraterrestres
se atentos
quando olham para baixo
são os únicos que podem ver
os fios invisíveis que nos conectam
às luzes acesas nos prédios
aos cães que latem no bairro
aos rios debaixo das cidades
às sirenes
aos vivos e aos nem tanto
emaranhados 
como uma bola de lã



terça-feira, 18 de agosto de 2020

quebranto

por um tempo 
o anel não coube no dedo 
gordo 
o cotovelo não aguentou a invertida
e o toque
as coisas voltaram ao normal depois
não sobrou quebranto 
ao lado da lavanderia
na mesa enorme
canetas e livros
três estantes de plantas
não havia mais nada de triste
só eu 

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Cimento

o cimento, você disse
uma arte complicada
tão difícil de moldar
as medidas e maneiras
no tom e tempo certos
com água e paciência
eu pergunto é pedreiro
um artista?

inflamados

cotovelo dedo braço beiço 
também a alma
por dois dedos
quase me escapa 


Farpa

um corpo estranho 
no
meu corpo ainda 
estranho a mim 

quinta-feira, 9 de julho de 2020

não existe nada estático

os ponteiros
os pássaros voando
a dor no peito
a violência das ondas
não existe nada estático
com os anos se desbota
pregado
o quadro na parede
as igrejas medievais
em eterna restauração
somem um pouco a cada ano
templos e corais
essa tristeza a me torturar
a alegria que vem depois
todas as coisas
tem um pedaço de vida
sempre a morrer

terça-feira, 30 de junho de 2020

Falta

Falta ritmo
um ritmo qualquer
entre os versos
da sua poesia
falta música
estudo
matemática, disciplina
Que falta a minha
escrever poesia
com tanta arte no mundo
pensei que a poesia
era só transbordar


Babosa

Quero comprar um vaso de babosa
ou também Aloe Vera
uma planta pontuda
cheia de tentáculos e nutrientes
quero acompanhar seu crescimento
ponta por ponta
eu vou arrancar um pedaço
passar na minha pele
outro pedaço vai crescer no lugar
quero comprar um vaso de babosa
passar no meu cabelo
Aloe Vera
uma planta conhecida
todo mundo devia ter um vaso 
tem tantas funções
a que mais me interessa 
entretanto
é que dizem que ela protege 
a casa da gente.

Estar no presente é o que 
senão ser
essa tarefa grandiosa 
que é ser
um ser vivo 
ser humano
ser

quinta-feira, 16 de abril de 2020

noção

acordei com a sensação
sabedoria?
de que neste exato momento
eu tenho tudo que eu preciso
para ser eu

sexta-feira, 10 de abril de 2020

é difícil ver agora

Ele lava a louça, eu medito e quando abro os olhos tudo parece mais branco
Ontem ele me mostrou o amolador de facas do avô
fez questão de tirá-lo da caixa de madeira e passar os dedos pelo grafite
- olha que bonito, sente
um objeto que atravessou os anos
no meio da estante eu achei um livro de poesias hindu
não entendi nada, mas as letras indianas remetem a oração
orei também com o autor
há um vírus circulando pelo mundo
minhas palavras não o alcançam nem faca ou amolador
à noite pessoas saem às janelas para gritar contra o presidente
em outros países elas cantam
Há um vírus, é difícil ver agora
mesmo que ele tenha deixado tudo mais visível
é difícil ver agora que isso é uma travessia.

terça-feira, 24 de março de 2020

Invisível

Poucas pessoas sabem
poucas, muito poucas
é invisível
não há ciência nem razão
é da ordem do mistério
indizível
ontem descobri
quando vi mais um morto
no leito do hospital
é proposital
da ordem do castigo
recomeço
da lição
é preciso matar
para chamar a atenção
é preciso morrer
para se fazer ouvir
silêncio
exílio
solidão
ele voltou
sem converter água
sem rosto ou apóstolo
quer que escutemos
devagar
atenção
lembre-se do amor
esqueceu?

segunda-feira, 23 de março de 2020

O que eu sinto não é isso

o que eu sinto não é isso
quando você abre aquele quarto
trancado a sete ou oito chaves
passado e pó me fazem espirrar
o que eu sinto é invenção e preenchimento
talvez nem sejam da ordem do sentir
tanto faz
eu invento o seu passado
crio imagens, cenas no jantar
ela sentada no seu colo
o que eu sinto não é isso
eu não sei
talvez seja vontade de apagar
eu também tenho passado
não dentro de um quarto
no mesmo quintal
na mesma casa
numa pasta
em tudo quanto é canto
o meu passado eu já perdi
o que eu sinto é o seu passado


sexta-feira, 6 de março de 2020

se ao menos

Me sinto cansada
minha perna esquerda dói
os olhos querem cerrar
te tocar eu não consigo
é tanto o meu cansaço
nesse fardo de viver
se ao menos eu soubesse
onde é que acende a luz

quinta-feira, 5 de março de 2020

Por trás dos olhos

Eu não tinha te notado quando cheguei na plataforma. Mal consegui reparar no seu rosto ou na cor das suas roupas e, mesmo assim, eu nunca mais me esqueci. Aquele olhar vazio, privado de um humano por trás dos olhos. Eu nunca pegava o metrô, mas naquele dia ia me poupar muito tempo. Comprei o bilhete e desci correndo para entrar no vagão. Mesmo assim perdi o primeiro trem e tive que esperar pelo segundo. Tinha pouca gente ali, duas ou três pessoas além de mim. Talvez cinco ou dez. Era o meio da tarde de uma quarta-feira. Três e quatorze da tarde. Eu lembro da hora exata porque tinha acabado de olhar o relógio quando você gritou: "O trem está chegando. Preste atenção que a sua vida vai mudar." Não consegui nem esboçar algum tipo de pergunta porque o trem chegou e você se atirou. Nem um porquê. Um 'e se' ou um 'como'. Nada. Não tem um dia sequer que eu não pense em você, no seu olhar vazio, na dor inexplicável que eu senti aquele dia. Eu não sei dizer se a minha vida mudou como você falou, tudo está sempre mudando. De fato você virou parte de mim, como talvez não teria virado. De uma maneira que eu não gostaria. Me fez ter medo da morte quando ela era só mais um detalhe.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

quinze vezes ao dia

ideia, vontade, filosofia
modifico-os o tempo todo
quinze vezes ao dia
entretanto uma vez basta
para você me olhar e saber
precisamente o que é
aquilo que não modifica

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Poesia

Não adiantam palavras bonitas
há de haver um ritmo, um nó, um eu
há de haver beleza
tristeza
rimar não precisa
há de haver uma falta de eu, de tu
uma falta qualquer
uma certeza da morte
medo não precisa
há de haver dor
palavras bonitas ajudam
mistério
uma lembrança que ninguém mais tem
há de haver uma poesia antes
uma escultura embutida na pedra
um ou outro silêncio
antes e depois
há de haver um depois



terça-feira, 14 de janeiro de 2020

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Quando eu acordo

Existem uns segundos logo que acordo
segundos de dúvida
quem é esse homem
qual cara ele tem
me viro por entre o nó de nossos corpos
você ainda dorme
te olho
te examino
me lembro que homem é
o meu
o que eu escolho amiúde
no instante em que acordo

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

O amor

o amor te ensinou a ter medo
do seu jogo preferido
tirou-o de casa uma vez
fez voltar outra vez
o amor deixou o seu rosto marcado
a postura mais curva
o cabelo mais ralo
o amor te empurrou
da escada
recolocou-o
na poltrona
o amor se mostrou
nos livros com recados
nos quadros da casa
em corações pendurados
o amor ficou de luto
escapou um minuto
disfarçou-se de vulto
no entanto o amor, meu amor,
esse amor malcriado
maldito e encantado
nem por decreto
deixou o seu lado

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

pelas paredes

é muita gente 
que passou 
pelas paredes
tijolos
seus olhos
seus filhos
o que ficou 

preso no fio

um dia você ganhou 
um coração 
preso num fio 
o prendeu 
no retrovisor
o manteve
balançando
não é mais tudo 
símbolo?


nem eu

você acha mesmo
que me sabe toda:
batatas
tristeza, tesão?
há um décimo meu
que nem eu

prega um prego
me dá um beijo
toca rebolo
afaga o cão
menos um quadro
mais um beijo
um prego
loja de construção
cólica prego
quadro foto
dor
tristeza
hospital solidão
deito no chão
Grande Sertão 
penso demais
afago o cão
domingo doeu
onde estava eu
com prego na mão

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Impulso

o céu branco fala diretamente com o meu peito
o seu corpo é sempre tão quente, eu não entendo
em alguns momentos eu me canso
e tenho vontade de voltar pra casa
o impulso humano é o de deitar-se ou de seguir?
às vezes parece que você tem as respostas
eu só não entendo o que elas querem dizer
minhas perguntas aumentam
o céu branco fala diretamente com o meu impulso
de deitar-me no seu peito sempre quente
você não tem resposta nenhuma para as minhas perguntas
o impulso humano deve mudar constantemente 
em alguns momentos eu me canso
e tenho vontade de fazer-te minha casa

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Fragmentos

espalhados
e parados
nos porta retratos,
nos pires, quadros e recados
micro fragmentos de mim
do meu cheiro, pensamentos, corpo inteiro
transformam minha casa
e tudo à minha volta
em um pouco de mim

domingo, 3 de novembro de 2019

constatação

As marcas de dedos no vidro da varanda 
o pôr do sol entre prédios
são uma espécie de aviso 
o astro e eu em algum lugar 
ocupamos o mesmo espaço


Há um cão que obedece
flores que nunca desbotam
o pai de um antigo amor
há mãos fortes
pedaços dele espalhados
em dois pedaços menores
há uma força que o move
o tempo todo pra frente
um sorriso que a espera
sempre no topo da escada
Há nela uma enorme vontade
de haver também nele


No peito

finalmente eu senti o lado esquerdo
não sei dizer se uma batida
um aperto
algo pesado
algo quente
algo que não sei dizer
se amor, saudade, tristeza
ao mesmo tempo
talvez tudo isso
seja uma coisa só que aperta
no peito

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

ser de alguém

mesmo que ser de alguém
esteja fora de moda
não consigo mais ser só minha
agora eu sou sua também
em tudo que eu sou
sinto, vejo, percebo e reflito
sou minha sim eu repito
mas parti minha alma no meio
e a outra metade lhe dou

Caso

você sentou no meu braço

imediatamente me esqueci de tudo que era antes

perdi minha casa

a noção de espaço e de tempo

disse sim

enquanto descia a escada eu sabia

seria você a minha casa

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

não adianta

tenho vontade de gritar com ela
apertá-la pelo pescoço, chacoalhá-la bem
mas não adianta, não tem jeito
nada disso tem efeito
a poesia é teimosa, mal-criada
só aparece quando quer
e nem sempre eu a entendo

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Sonhei

Eu olhava nos olhos do Steve Martin e perguntava:
como se faz para criar algo original no campo da atuação?
Ele ia responder, mas era interrompido.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Seminário

Quem é esse homem? Sobre o que ele fala?
quando me beijou na cama mais cedo sua língua era outra
"tratar o real pelo simbólico" do que se trata?
Ele fala, fala, fala grego, árabe, francês
quem é esse homem que dorme em mim?
ele diz datas, anos, um bebê chora lá fora
"no seminário de Roma" parece tão solene
quando me beijou na cama era leve, suave
ele chama o bebê de melodia agradável
e o despreza solenemente
tenta se concentrar de novo, sério
eu penso no bebê, no quanto os bebês choram
esse homem é a minha casa?
"a ruptura das coordenadas simbólicas"
não faz nenhum sentido para mim
mas eu acho bonito, queria colocar num poema
toda ruptura rende um poema
todas as suas
será que algum dia a gente se separa também?
espero que não e espero mais um pouco por ele
Sinto que ainda temos aquela venda nos olhos
aquela que se desfaz com o tempo
quando o amor se acostuma
sobre o que esse homem fala?
Alguém pergunta algo em russo
a mulher ao seu lado diz que é algo muito sério
eu penso se é sério como o aquecimento global ou o câncer
ou sério como ele, que franze a sobrancelha penteada por mim
eu sei quem é um fragmento desse homem
o meu fragmento
quero sentar no seu colo e fazê-lo rir como sempre
Esse fragmento de homem me amaria mais
se eu o entendesse inteiro?



segunda-feira, 30 de setembro de 2019

fim de semana

você prega dois quadros na minha parede
seu cachorro me fareja chegando
passa um trem na minha janela
prefiro os seus passarinhos
coloco roupas pra lavar na sua cesta
será que um dia a gente se casa no almoço
a calça do seu filho me cabe
você não gosta do churros
a moça que vasculha o lixo nos chama
o velho artista recita poesia no ipad
triste com o frio e as coisas da velhice
um estúdio com vista
pra gente imprimir amor nas paredes
o próximo inquilino vai ter que pintar
naquele monte de livros eu te conto:
uma mulher fez poesia com o movimento dos olhos
o movimento que fazemos me encanta
não gostava desse bairro
mas estou aprendendo a amar cada canto
porque é seu

Contagem das notas

Adio todos os dias a contagem das notas
já sei que não são muitas 
todos os dias me fazem pensar 
os legumes enrugados na forma 
a minha pele
contar notas é o que se faz
essas palavras que eu transbordo
me desenrugam um pouco a pele
mas não colocam legumes na forma
é preciso levantar 
e contar notas

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

de manhã

Eu sei que não dá tempo pra mais coisa
de manhã:
tem o café, o cão, o rosto para lavar
pernas que te prendem

mas sabe o que é?
precisa regar também pela manhã
faz tanto calor
manjericão gosta de água
o tomilho-limão e aquela azulzinha

sendo assim, deixe comigo
eu irei te enroscar
toda manhã te atrasarei
café, cão, rosto pra lavar
depois
prometo
eu regarei nosso jardim

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Tô falando agora

Fico querendo dizer que eu te amo em momentos que não tem nada a ver como quando estamos deitados vendo filme ou no meio da madrugada quando você está dormindo ou quando estamos no sofá da sala depois de ter passado vários dias sem se ver. Acontece que falar eu te amo me soa sempre tão redundante, óbvio, clichê. Um carrapato dizer que adora sangue. Você já sabe e eu falar parece que vai tirar a graça de todos os gestos que falam por mim. Já falei tantas vezes. Tô falando agora enquanto te olho com essa cara de boba e fico fazendo carinho no seu rosto. Falei também quando criei o hábito de sentar no seu colo no café da manhã. Te amo. Te amo.

domingo, 1 de setembro de 2019

terça-feira, 27 de agosto de 2019

ex-jogador

o tempo não sabe a hora certa
ele diz, e corta a carne no prato
me sento no seu colo para ouvir
não posso reclamar, ele fala, não vivi uma vida morna
observo suas manchas de perto
imagino as suas casas anteriores, o filho que ele não teve
as paixões que arrancaram raízes
o pintor que era sogro e agora é paciente
eu gosto de ouvi-lo contar
as batatas no seu prato parecem aguadas, sem gosto
mas o pedaço de carne brilha
ele dá mais um gole no vinho bem na hora de dizer
que não sabe o que esperar
que não pode mais jogar rugby
ele tem o corpo que eu gosto, de ex-jogador
ele mostra sua taça maior do que a minha
e eu bebo bem na hora que digo
que agora eu faço parte
também não sei o que esperar, mas sei que é muito
não fui a primeira mulher a chegar
mas eu cheguei bem agora, nesse momento preciso
eu trouxe comigo o meu tempo, o meu corpo
o meu órgão que bate
eu não digo nada mas penso
o tempo sabe a hora exata

sábado, 24 de agosto de 2019

Noite em claro

A primeira vez que eu passei a noite em claro
eu estava no acampamento de férias
eu e o menino ruivo que tinha a voz rouca
ficamos mexendo na fogueira semi apagada,
olhando o céu ficar claro
espantando espíritos com gravetos
no dia seguinte eu lembro de olhar no espelho
e ver aqueles sulcos roxos debaixo dos olhos
depois eu dormi e elas foram embora, as olheiras
agora não é mais assim
as olheiras estão sempre aqui,
mesmo que eu durma o dia todo
me lembram que os anos estão passando
não adianta espantar espíritos com gravetos
eles vem de qualquer jeito
levam um pouco da nossa vida
e deixam os nossos olhos marcados

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Sonhos

Uma vez eu sonhei que você me dizia
amar é trocar o vazio
pelo transbordar
você tocou uma música pra mim
no violão
e no final me disse
que os seus olhos saíram de órbita
eu não sei o que isso quer dizer
estou sempre cheia de sonhos
com mensagens secretas
você decifra e não me conta
mas é tão fácil de ver
que estou transbordando


segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Procuro uma casa

eu olho as ruas no mapa e elas não são muito perto da sua
nem do metrô
nem do meu salário
penso em desistir mas minha mãe me chama da cozinha
eu preciso de espaço
de silêncio
as ruas tem nomes de mulheres tristes
Linda Ferreira da Rosa, aposto que não era linda
nem de nenhuma rosa
eu nunca paguei aluguel
só o supermercado
e as plantas
a sua voz se dá bem com qualquer poesia
sua risada com a minha
as ruas com árvores não são mais caras
elas já vem com passarinhos
mas o aluguel não muda por isso
de repente eu percebo que procuro uma casa
bem dentro da sua gaveta

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Chanel número 5

Eu abri a gaveta e encontrei no canto, ao lado de alguns livros, um Chanel igual ao meu. Mas não era o meu. Era de alguém que esteve ali antes de mim. Uma mulher que não conheço, nunca vi. Fechei a gaveta com vontade de ir embora. Tinha um pouco da mulher na gaveta. No cômodo, no lado direito da cama, em todos os seus lençóis. Em tudo seu tinha um pouco da mulher que não era eu. Quanto dela teria em você, nos seus pensamentos, no seu jeito de sorrir? Sentei na cama e você falou comigo, mas eu não ouvi. Só queria ir para casa. A minha casa. Abrir a minha gaveta e encontrar as minhas coisas, os meus livros, o meu cheiro. Acordei. Aquilo foi só um sonho: a mulher, a gaveta, o perfume. Um sonho que podia ser real, mas não tinha nenhum perfume na gaveta. Te contei do meu sonho no café da manhã. Desci as escadas rumo ao portão e você sussurrou: psiu, a gaveta é toda sua. Sorri. E a mulher dissolveu-se de tudo quanto é canto.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A chegada

Meu pai, romântico, sempre me falou dos sinos que tocariam
anunciando a chegada do amor.
Ele é um dos poucos homens que viu o amor a olho nu.
Andou por aí, teve muitas mulheres,
mas sempre foi só da minha mãe.
Quando eu digo que estou apaixonada, ele rebate: "ouviu os sinos?"
Exagerado.
Sinos que tocam sem que ninguém ouça é esquizofrenia.
Tem remédio pra isso.
Quando eu te vi, encurvado no braço da cadeira
o rosto cansado, o cheiro de cerveja,
é claro que não houve sinos, eu nem esperava
mesmo que o beijo encaixasse, o abraço, a conversa.
Ontem você leu poesia para mim
sua voz cuidadosa respeitava os versos,
o tom que pede cada palavra, a calma
um ruído interrompeu a leitura, mas você não parou
me olhou sorrindo como se nem percebesse
o ensurdecedor badalar.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Poesia

meus amigos não entendem

a solidão que é gostar de poesia

esmiuçar palavras, solitária

organizá-las por cor

vê-las dançando, gritando coisas

quando rabisco algumas frases

exponho as minhas tripas e eu gosto

acho lindo

mas é pura solidão.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Embaixo da cama

Eu sei que é preciso olhar
mas é tanto o meu receio
já encontrei de tudo
embaixo da cama alheia
sacos de ossos, escuridão
perda de tempo, não
o olhar nem sempre atento
deixa passar tanta coisa
quando eu precisar olhar
embaixo da sua
o medo é do que vou achar



vez

Não vês que outra vez
essa vez
parece a última vez?
Eis que dessa vez
seja talvez,
não vês?

quinta-feira, 4 de julho de 2019

uma hora

espera que eu estou me preparando
pouco a pouco
por dentro
aprendendo a ser
me espera que uma hora eu chego
se deus quiser
e eu sei que ele quer
me ver sendo

Fora

de pensar que eu já coube
dentro da minha mãe
me sinto tão fora
de tudo quanto é lugar

As duas vidas

A vida na terra me põe a questionar a vida etérea
a vida etérea me põe a duvidar da vida na terra
embora vivam juntas, de mãos dadas
as duas brigam nos meus sonhos.
Quando acordada, eu brinco com as duas
distraída nem percebo:
são elas que brincam comigo.

terça-feira, 2 de julho de 2019

destino cravado

Ele nem sabe
mas era para ela ter ido embora há 20 minutos
no dia que eles se conheceram
[ela chegou a descer as escadas]
acontece que ele
não acredita em destino cravado
[e talvez seja mesmo bobagem]
então ela nem fala nada




sexta-feira, 28 de junho de 2019

o corpo preciso

Tem tanta vida pela frente
mesmo quem não tem
cada segundo é tanto tempo

por mais que com o tempo
o corpo se canse
cada segundo é um templo

a todo instante que vivemos
temos o corpo preciso
para o que precisamos

Temos tanto tempo
mesmo quando não temos
tudo é sempre tão exato

nada que temos agora
é menos, nem mais

o corpo e o tempo sabem
a leveza na alma é uma cura
o passar do tempo também

quarta-feira, 19 de junho de 2019

boca do outro

você repetiu o que eu disse
fiquei assustada
quando ouvi da sua boca
quis ficar em silêncio
esquecer sua presença
pensar no que eu disse
tudo parece tão distorcido
quando sai da boca do outro

vontade

me acostumar com os seus lençóis
fazer parte de alguma rotina
sentir o seu cheiro de manhã
ouvir o som que você ouve
antes do café
saber as suas histórias
até as que você não conta
lembrar a cor dos passarinhos
que cantam na sua janela
não ver pôr do sol da varanda
por causa das árvores
conhecer os sapatos dos seus filhos
embaixo das pequenas camas
trocar os meus pés
pelos seus

terça-feira, 11 de junho de 2019

Se livrar

Estou tentando me livrar de tanta coisa atualmente
coisas do meu armário, da minha casa antiga
coisas que são só bonitas, cartas velhas
nem preciso de tanta foto do passado
às vezes eu imagino, como naquela música do Chico,
minhas coisas submersas, livros, diários
frases grifadas
Estou tentando me livrar de hábitos
de pensamentos, de nuvens tapando o meu sol
outro dia eu doei uma blusa cinza que eu usei uma vez com você
fomos no cinema, nos abraçamos na escada rolante.
ela não me traz mais aquela alegria.
Tenho duas sacolas paradas em casa
de coisas que eu preciso me livrar
Outro dia eu doei uma lata comprida que eu não usava
ganhei um café que caberia perfeitamente lá dentro
me arrependi
a gente não se livra de pessoas
se desconecta, se separa, se afasta
eu me afastei de muita gente que ocupava um espaço precioso
um espaço que poderia estar sendo ocupado por poesia,
conversas sobre o Universo, compreensões profundas,
risadas de alma, arte ou silêncios sagrados.
me livrei de um livro horrível que eu precisei editar
faltavam dez páginas mas eu não aguentei
tanto tempo perdido para ler algo que me doía os olhos
não consigo me livrar de alguns sentimentos
medo, raiva e solidão
existem coisas das quais são dá para se livrar
nosso corpo, nossa história, nossa condição como humanos,
solidão.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

processo criativo

eu aprendi num curso que eu fiz que a maneira mais eficaz de se aprender alguma coisa é ensinando.

você me disse que eu te ensinei muita coisa. queria saber o quê

estou com dor de dente e todos os dias eu torço para que passe sozinha

muitas dores passam sozinhas e sempre levam alguma coisa junto

às vezes um dente

a gente falou de processo criativo

vou precisar pensar qual é o meu

fico olhando as pessoas, cavucando amores antigos

[eu poderia estar casada agora, sem nem saber quem eu sou]

fisguei a minha alma lá no fundo do oceano
quase afogada, sozinha

abandono de incapaz

o cabeleireiro me perguntou qual é o meu defeito preferido

físico ou de personalidade?

respondi "olheiras" e pensei na minha enorme dispersão
eu não consigo me concentrar

o que foi mesmo que você falou sobre a sua mãe?

ainda bem que você cancelou nosso jantar
faz tanto frio e você quase não me entende

você me acha um bicho esquisito que te faz rir

um bicho bonito

eu queria mesmo era achar um bicho da minha espécie

um bicho pra me ensinar a ser gente
um bicho que eu pudesse aprender.


Não sei dizer o que foi

Não sei dizer o que foi
o café da manhã era bom
a massagem também
a conversa
o encaixe
não quis ficar em silêncio
só um pouco
ele também
o som da rua não atrapalhou
o tempo curto
o monólogo
me dá mais um abraço:
não foi

templo

me sinto tão bem agora
que me falta poesia
eu gosto de homens que me tratam como um templo
eu sou mesmo um templo, nós mulheres
gosto de ver as minhas cascas caindo no chão
dia após dia
gostei de te ver no bar, o mesmo de sempre
sem um pingo de empatia
desesperado por amor verdadeiro
você foi o último que eu deixei entrar
você me ensinou a esperar pra ver
eu só agradeço, tanta calma agora
minha poesia sempre veio da tristeza
agora eu sei mais
mas me falta poesia

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Mancha

veja como é pequena
e engraçada
a minha alma
veja como brilha
e ri da tentativa
de prendê-la neste pote
já não está mais aqui ela
deixou uma grande mancha
de algo que não sei
amor, será?


segunda-feira, 27 de maio de 2019

Ele não sabe

Será que ele não sabe
que ela tem fios de cabelo 
caindo no rosto 
no pescoço, na nuca?
dedos que mexem nas coisas 
com elegância e unhas
que parecem sempre feitas?
será que ele não sabe
que ela faz poesia com as palavras
dá risada do engraçado
opina sobre tudo 
- tantas vezes com razão?
ela tem olhos azuis
corpo de bailarina
velas, incensos e anéis,
será que ele não vê?
as coisas que ela escreve 
podiam estar emolduradas
mas estão no livro
que ele insiste em devolver
o coração dela 
devia estar num altar cheio de flores
mas acho que ele não sabe
ela tem fios de cabelo 
que caem no rosto enquanto fala
mas acho que ele não vê.



terça-feira, 21 de maio de 2019

flowers in the mug

when I saw you, the poor stranger
sitting down at the table with the guys
you had such big eyes
you stared at everyone so curious
I tried to help you understand the chattering
somethings were too confusing
somethings not funny at all
like when I hit the glass door
you didn't laugh
you seemed so serious
and so interested in what I had to say
I wasn't going to kiss you
but you sounded so Italian
so free and sweet
so inviting
I gave you that mug
hoping you'd come back
so we could put flowers in it
and make it part of our story

era nenhuma vez

Montei no cavalo branco e fugi
não disse sim
não tive tempo 
quando vi, já era uma possessão
guardei o anel na caixa
voltei para a torre 
cortei as tranças
sumi do baile
Eu não disse sim
nenhuma vez
mas ele, cego, não ouviu

segunda-feira, 20 de maio de 2019

única

quando lembro de você indo para o quarto
vestindo aquela camiseta branca
enorme
não lembro por que fui embora
imagino o silêncio que ficou na sala
sem plantas
você me fazia rir
mas eu chorei uma vez
- e bastou.



sábado, 27 de abril de 2019

sorrio

Gosto de imaginar
você me procurando na festa
sorrio quando penso que você
nunca vai me encontrar

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Quando acendo a luz que carrego no peito

Quando acendo a luz que carrego no peito
eu entendo:
tem sempre alguém por perto
Luz brilha, ilumina
é ímã de companhia
Quando acendo a luz que carrego no peito
eu vejo melhor os meus defeitos
não dá pra esconder
a luz revela a quem não quer ver
Quando apago a luz que carrego no peito
que percebo
dor entalada e solidão
ninguém fica com a luz apagada
não vale nada a escuridão




terça-feira, 23 de abril de 2019

Foto sua

A sua fotografia no meu computador
não me dá mais saudade
aceitaria apenas saber de você
ver o que mudou
tão difícil ter mudado
mas eu queria ver
Eu lembro daquele dia
que eu passei um perfume da Índia
um cheiro que me encantava
você disse que eu cheirava yoga
não gostou que ficou no seu travesseiro
aquela foi a última vez que eu te vi
você parecia o mesmo de sempre
guardado dentro de si
Agora eu olho a sua foto
aquele sorriso cheio de segredos
algumas mentiras
Eu não tenho mais saudade
do seu abraço e cama
você deitava sempre tão longe
Agora eu vejo na foto sua
alguém que eu nunca conheci

eu teria ido

Nosso amor nunca fez sentido
a gente não era pra ser
nosso amor estava impedido
muito antes de acontecer
Mesmo que sorrateiro
ir embora às vezes faz bem
você foi o primeiro
mas eu teria ido também

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Minha água

Quando eu vejo a minha água
num rio pequeno transbordar
sei que é preciso
de qualquer forma me desviar
se a borda é pouca
não vale a pena
seguir o fluxo, continuar
minha água é tanta
- e tão sagrada
que o meu leito deve ser grande
e também forte pra comportar.





terça-feira, 9 de abril de 2019

vergonha

você não tem vergonha de escrever poesia?
você me perguntou.
vergonha
do que sai de mim naturalmente?
palavras brincando no meu cérebro,
vergonha?
Os quadros no chão da sua casa
que parecem abandonados
a mesa sem graça e a falta de plantas
na sala sem luz, nem uma luz
os cremes no banheiro
de alguém que fugiu
quando você passou o dedo no prato
e constatou sujeira
você não tem vergonha?
Eu?
não de poesia.








segunda-feira, 8 de abril de 2019

pão de queijo

deixei cair um pão de queijo no chão
olhei para sua amiga e rimos
colocamos de volta na vasilha,
disfarcei
te conheço muito bem
não deixei nem chegar perto:
eu mesma comi.

você me salvou do carnaval

você me salvou do carnaval,
e eu pisando em ovos
orgânicos
esqueci de reparar
em todas as coisas erradas
você me ganhou no carnaval mas
eram tantas coisas erradas
que eu não quis mais voltar

segunda-feira, 25 de março de 2019

semana que vem

eu ia voltar na semana que vem
deixar sândalo no seu travesseiro 
te levar uma costela de Adão
morder o meio da sua barriga
tentar te fazer ouvir
mas você é tão disléxico
confuso
te falta paciência, silêncio
você é tão inteligente
e distraído
meu hidratante na pia
eu deixei pra você ver que
eu ia voltar na semana que vem




terça-feira, 19 de março de 2019

seu

Esse aqui é para você
que chegou meio depressa
depressa demais
me levou
esse aqui é para você
que foge de sujeira
de multidões
que gosta de dormir
gostou de mim
eu também gostei de você
e esse aqui é todo seu.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Caminho

Eu sei que estou no caminho certo quando sinto que estou ficando cada vez mais parecida com a minha mãe.

quarta-feira, 13 de março de 2019

breve

ontem, enquanto eu voltava de qualquer lugar, me lembrei do nosso amor breve. de quando eu ia para sua casa pela avenida paulista. era curioso que sempre tinha vaga bem na frente do seu prédio. você tinha que descer para abrir a porta e às vezes a gente comprava cerveja no seu bar de esquina. eu gostava quando você começava a ficar mais falante por causa da cerveja. uma vez você ficou bêbado no sofá, me pediu mil desculpas e disse que me amava. em seguida você disse que eu não queria te amar de volta. talvez você tivesse razão, mas não era consciente. a gente encheu a sua casa de plantas e você fez delas suas filhas. algumas morreram, mas é assim mesmo, plantas são mesmo difíceis. você me deu de presente um livro fascinante sobre a complexidade misteriosa das plantas. a gente conversava na varanda e a casa ia enchendo de pó que vinha da rua. o pó era mais forte do que as faxinas. o barulho da rua só parava bem tarde. a vista para a lua era linda. eu queria ter ouvido mais a sua vitrola, acho que só ouvimos uma vez. eu gostei tanto de quando a gente assistiu o meu filme preferido e você chorou. você se encantou como eu. aquela vez que a sua sopa estragou na geladeira eu queria morrer. ter tirado os tapetes da sala foi a melhor ideia. eu ainda não entendo muito do que você tanto se esconde. se eu quis te amar eu não sei, mas eu acho que amei.

Quando saio, não volto

 Se tenho que sair [tentei fincar as mãos  no corrimão  da escada de casa] saio a passos lentos sem desejo um pouco de medo depois da porta ...